Por Joana Patacas*, em 10 de novembro de 2024
A talentosa Margarida Simões, uma das vozes a destacar no panorama lírico português
atual, é uma soprano cuja trajetória evidencia uma versatilidade notável e um compromisso profundo com a sua arte.
Natural de Lisboa, começou o seu percurso de canto na Escola de Música do Conservatório Nacional, onde estudou com Ana Paula Russo, e, mais tarde, licenciou-se em Música, variante de Canto, na Escola Superior de Música de Lisboa sob a experiente tutela de Armando Possante. A sua formação inclui ainda masterclasses e aulas privadas com célebres artistas como Sandra Medeiros, Ana Quintans e Susan Waters, entre outros, o que a dotou de uma versatilidade e expressividade invejáveis.
“Uma das lições mais valiosas foi ter compreendido a importância de uma interpretação rica e autêntica, atenta aos detalhes e subtilezas emocionais. É isso que traz magia à interpretação.”
A sua voz versátil e expressiva permitiu-lhe abordar um repertório diversificado, que vai desde obras barrocas até obras contemporâneas. Margarida destacou-se em papéis de ópera como Vénus em Venus and Adonis de John Blow e Hänsel em Hänsel und Gretel de Humperdinck, além de ter interpretado obras-primas do repertório de concerto, incluindo missas de Mozart e o Requiem, bem como o Magnificat de Bach, o ciclo de canções Frauenliebe und Leben de Schumann e a obra Ah! Perfido de Beethoven. A sua capacidade de adaptação é também evidente na sua interpretação de modinhas luso-brasileiras, como membro do grupo “Cantos do Sabiá”, trazendo à vida a riqueza histórica e emocional dessas obras.
“Considerando que a decisão de encarar a música de forma profissional foi um pouco tardia, receber um prémio é sempre encorajador. É uma forma de validação de que estou no caminho certo e de que devo continuar o meu trabalho.”
A artista tem demonstrado não apenas excelência técnica, mas também uma profunda compreensão emocional das obras que interpreta. Recentemente, foi laureada com o 3.º prémio no Concurso de Canto para Jovens Intérpretes José Augusto Alegria, uma confirmação do seu talento e dedicação. É uma presença constante em concertos, onde canta frequentemente a solo, sendo de evidenciar as suas atuações com o “Ensemble São Tomás de Aquino”.
“Vejo a música como uma expressão da natureza humana, um convite para conhecermos melhor a nossa própria humanidade e a dos que nos cercam, e uma oportunidade para nos tornarmos pessoas melhores. Se, através deste processo, conseguimos tocar e inspirar quem nos ouve, então estaremos a contribuir para um mundo mais tolerante e solidário.”
Nesta entrevista exclusiva à SMARTx, exploramos mais sobre a trajetória artística de Margarida Simões, as suas inspirações e os desafios de conjugar a carreira de cantora lírica com a de médica dentista. Os leitores podem esperar uma visão íntima das motivações pessoais e artísticas que impulsionam esta talentosa soprano, bem como dos seus planos futuros para continuar a encantar audiências em Portugal e além.
Como é que a música surgiu na sua vida?
No meu caso, foi a minha mãe que tinha uma grande paixão por música e decidiu inscrever-me a mim e ao meu irmão numa escola de música. Na altura, eu ainda não tinha um interesse definido. Era uma atividade de que gostava e na qual tinha algum talento, mas via a música mais como um passatempo. A verdadeira paixão só despertou alguns anos mais tarde, quando comecei a cantar em coro, na Escola de Música do Conservatório Nacional, com a maestrina Teresita Gutierrez Marques. Comecei a ter aulas de canto e a música tornou-se uma paixão que tem crescido comigo ao longo dos anos.
Que impacto tiveram os seus mentores na sua formação?
Acredito que um professor de canto, além de ensinar, deve ter uma forte componente humana e estabelecer uma relação especial com o aluno, incentivando e motivando-o. A professora Ana Paula Russo foi uma figura muito importante no meu percurso. O professor Armando Possante, já na faculdade, também teve uma importância angular na minha formação. Ele tem uma capacidade notável de entusiasmar e fazer o aluno acreditar em si mesmo. Gostaria também de mencionar a soprano Sandra Medeiros, com quem aprendi muito a nível técnico, especialmente no domínio da respiração. Além disso, participei em vários workshops e tive aulas privadas com grandes nomes da música, como Susan Waters, João Paulo Santos, Siphiwe McKenzie, Elena Valdelomar e Ana Quintans, o que enriqueceu ainda mais a minha educação.
Quando é que decide que quer seguir uma carreira profissional na música?
Foi um processo gradual. Durante muito tempo, encarei a música como um passatempo. A música sempre fez parte da minha vida e, mesmo depois de ter iniciado a minha carreira como médica dentista, apresentava-me regularmente em concertos com grupos semiprofissionais. Mais tarde, comecei a sentir a necessidade de me profissionalizar e de me dedicar mais seriamente a esta atividade. Foi um desejo que cresceu de forma hesitante, pois, embora eu continuasse a realizar concertos, sentia que faltava algo que me projetasse mais neste mundo.
Chegou a ponderar viver apenas da música?
Sim, mas é muito difícil viver apenas da música…
Licenciou-se em Música, variante Canto, na Escola Superior de Música. Como foi essa experiência?
O facto de esta ser uma segunda licenciatura, realizada numa idade mais tardia do que é habitual e, portanto, com outra maturidade, permitiu-me ter uma motivação sólida para alcançar os meus objetivos. Dediquei-me seriamente ao estudo, pois exercer medicina dentária a tempo inteiro e fazer simultaneamente um curso superior não é fácil. Acredito que essa maturidade me permitiu evoluir e ver o canto de outra perspetiva. Também aprendi a organizar-me de maneira diferente, pois não havia tempo a perder.
Das aprendizagens mais recentes, qual considera mais valiosa?
Uma das lições mais valiosas foi ter compreendido a importância de uma interpretação rica e autêntica, atenta aos detalhes e subtilezas emocionais. É isso que traz magia à interpretação, transformando-a numa experiência inesquecível para quem assiste.
O seu repertório é muito diversificado, abrangendo obras do período renascentista até ao período contemporâneo. Há algum estilo ou período musical que prefira?
Tenho uma predileção especial por Mozart e por compositores clássicos, e sinto que a minha voz se adapta naturalmente a esse tipo de repertório. No entanto, ultimamente, tenho explorado mais a música antiga, que também consigo interpretar com facilidade. Contudo, não me limito a um único estilo e também gosto de interpretar, por exemplo, a canção alemã, pela profundidade emocional que exige. Adicionalmente, tenho interesse no repertório do século XIX, apesar de não o cantar com tanta frequência.
Como é que se prepara para um papel operático?
É essencial compreender a história da ópera, tanto a trama como o contexto histórico em que foi escrita. Também considero importante estudar outras interpretações existentes da mesma personagem e começar a esboçar notas sobre o seu caráter. Além disso, aplico o método de Stanislavski, que consiste em identificar elementos da experiência da personagem que ressoem com as minhas próprias vivências, criando assim um amálgama que traz autenticidade ao papel. Este é um processo minucioso que começa com uma visão geral e, gradualmente, concentra-se nos detalhes.
Faz parte do grupo Cantos do Sabiá. Fale-nos deste projeto.
O "Cantos do Sabiá" é um grupo dedicado às Modinhas Luso-Brasileiras, um género musical do século XVIII que combina elementos populares e eruditos, sendo executadas por voz ou vozes solistas com acompanhamento de instrumentos como cravo, pianoforte, viola (guitarra), guitarra portuguesa ou mesmo um pequeno ensemble de câmara. O nosso projeto também se integra na recriação de eventos históricos, apresentando-se frequentemente em trajes de época, o que enriquece a experiência do público. Eu, juntamente com a mezzo-soprano Mariana Monteiro, o tenor Carlos Reis, e a guitarrista Vanessa Gonçalves, fundámos este grupo em 2018, por ocasião de um concerto na Fundação Oriente para a celebração dos 30 anos da mesma e os 10 anos do Museu do Oriente. Após esse concerto, continuámos a atuar em eventos e festivais, como o I Festival de Música Antiga de Torres Vedras, o II Festival de Música Sons do Côa e outros. Explorámos o repertório de modinhas, adquirindo partituras e dedicando-nos ao estudo deste género tão rico que faz parte da herança cultural portuguesa e brasileira. Descobrimos que é um repertório muito divertido e que permite explorar aspetos dramáticos em melodias simples que com a ajuda da componente cénica que tomamos a liberdade de adicionar à prestação e com o recurso a figurinos de época, ganham uma nova vida. Além disso, a resposta do público neste tipo de espectáculo de câmara é facilmente apercebida por nós no imediato, o que torna a dinâmica destas actuações muito simbiótica e gratificante.
Também tem um duo com a teorbista Mariana Santos. O concerto que fizeram em março na Antena 2 intitulado Udite Amanti foi um momento especial?
Sim, sem dúvida que foi um momento especial. A Mariana, na tiorba, e eu, interpretamos repertório de música antiga de caráter intimista. Ter a possibilidade de apresentar o nosso trabalho em direto para a Antena 2 foi um desafio muito gratificante. As peças deste programa, para além de belas, convidaram à exploração da seu conteúdo emocional, tornando a experiência prazerosa e muito enriquecedora. Dedico-me a estudar e a explorar todas essas nuances emocionais e, depois, a apresentá-las ao público. Aprendi a não temer a exposição da minha vulnerabilidade em performance, pois percebi que esta traz uma dimensão positiva na resposta do público. Naturalmente, não sou uma pessoa que goste de se expor, então, sair da minha zona de conforto para me apresentar dessa forma também exige uma preparação considerável. No entanto, o resultado é recompensador, tanto a nível pessoal como para quem assiste.
Recentemente conquistou o 3.º prémio do Concurso de canto para Jovens Interpretes José Augusto Alegria (8ª edição). Qual a importância deste tipo de reconhecimento?
Para mim, este reconhecimento tem uma importância significativa, especialmente a nível pessoal. Considerando que a decisão de encarar a música de forma profissional foi um pouco tardia, receber um prémio é sempre encorajador. É uma forma de confirmação de que estou no caminho certo e de que devo continuar o meu trabalho.
Claro, além do aspeto pessoal, este prémio também aumenta a minha visibilidade no meio musical. Apesar de concordar que a música, idealmente, não deveria ser uma competição, a realidade é que os concursos desempenham um papel crucial na carreira dos artistas hoje em dia, ajudando-os destacar-se num campo tão competitivo.
Como é que se faz a gestão de duas carreiras tão distintas – a de médica dentista e a de cantora?
É um desafio que exige bastante dedicação e organização. Até agora, tenho conseguido manter um equilíbrio que me permite ter sucesso em ambas as áreas. Costumo dizer que uma das carreiras me consome enquanto a outra me dá vida, o que implica que uma é quase necessária para a existência da outra neste momento. Quando me dedico à música, toda a minha atenção recai nessa parte da minha vida, de forma que tudo o resto fica um pouco à margem. É como se entrasse num universo paralelo onde as preocupações da outra carreira não se cruzam, permitindo-me imergir completamente em cada uma delas sem interferências.
E têm pontos em comum?
Sim, há alguns pontos em comum, especialmente no que se refere à compreensão da fisiologia do aparelho estomatognático e do aparelho vocal. Esses conhecimentos têm sido úteis tanto na compreensão de alguns mecanismos do canto, como na transmissão de ensinamentos aos meus alunos de técnica vocal. Inclusive, para o mestrado em medicina dentária, escolhi investigar a possível relação entre disfunções das articulações temporomandibulares e o canto, num estudo com uma população de 95 cantores.
Como tem sido a sua experiência enquanto professora de técnica vocal na Paróquia de São Tomás de Aquino?
Devo dizer que ainda é bastante recente. Na verdade, até começar a dar aulas, não tinha percebido o quanto isso me poderia agradar. É muito interessante observar nos alunos melhorias na execução de exercícios vocais, depois do adequado aconselhamento para ultrapassar as dificuldades dos mesmos. Além disso, ensinar tem-me permitido compreender melhor o meu próprio instrumento vocal. Ver as dificuldades e progressos dos outros ajuda-me a perceber aspetos que eu mesma posso aprimorar. E, claro, há a vertente de lidar com outros seres humanos, uma realidade também presente na minha prática como médica dentista e sei que pode trazer muitos desafios. No entanto, nestas aulas trabalho com pessoas que têm um gosto real pelo canto, proporcionando-se um ambiente muito positivo e produtivo, tanto a nível pedagógico como pessoal e social.
Quais são os seus planos para o futuro?
Quero continuar a desenvolver a minha carreira a solo. Em outubro vou cantar no Festival de Música “Sons do Coa”, num concerto intitulado Canção Livre, Voz e Piano. Além disso, tenho outros concertos planeados com o Ensemble São Tomas de Aquino e outros grupos. Também tenho planeada uma nova atuação numa ópera portuguesa.
Que cuidados tem com a voz?
O principal cuidado é garantir uma boa noite de sono. É essencial não só dormir um número adequado de horas, mas também respeitar o meu ritmo circadiano. Não basta dormir oito horas se isso não estiver alinhado com o meu ciclo natural, ou se isso implicar descompensações durante o dia. Evito beber café antes de cantar, apesar de gostar muito e de ele ser útil na minha rotina agitada. O café afeta a minha voz porque lhe traz secura. Também evito alimentos como leite, iogurtes, ovos e chocolate antes das atuações. Além disso, procuro proteger-me de ambientes que possam desidratar as mucosas, como aqueles com ar condicionado e ventoinhas direcionadas para o rosto. Por fim, considero fundamental manter uma rotina de exercícios vocais e respiratórios, mesmo durante períodos de férias. Há uma série de exercícios específicos que realizo regularmente para ativar e fortalecer a musculatura envolvida no canto.
Quais são os seus passatempos?
O meu tempo livre é bastante limitado, mas quando posso costumo ver séries e ler um bom livrro. No entanto, um dos meus passatempos favoritos é desenhar e pintar. É algo que faço desde pequena e cheguei mesmo a frequentar cursos de verão de desenho e pintura. São atividades que me permitem mergulhar noutro mundo, onde consigo fluir com criatividade e esquecer um pouco as pressões do dia-a-dia. Infelizmente, não tenho conseguido dedicar-me a isso, devido às exigências da minha rotina profissional e pessoal. Mas sempre que possível, é algo que gosto muito de fazer para relaxar e expressar-me artisticamente.
Que conselho pode dar a um cantor em início de carreira?
Apesar de considerar que o início do meu percurso foi um pouco atípico, acredito que há alguns pontos importantes para quem está a começar. Primeiro, é essencial perceber de onde vem realmente o desejo de criar uma carreira musical. Esse entendimento ajuda a direcionar os esforços e a definir objetivos mais claros. É fundamental encontrar um mentor que saiba orientar bem, que seja entusiasta e que consiga estabelecer uma boa ligação com o aluno. Também é importante não ter pressa. O desenvolvimento vocal e artístico leva tempo, e é crucial dar-se esse tempo e permitir que a carreira evolua de forma saudável. Outro ponto importante é não se sentir pressionado a cantar repertórios que não se adequam à sua voz atual. Isso pode causar stress e danificar as cordas vocais, limitando a carreira em vez de nutri-la. A carreira de canto pode ser longa e enriquecedora, com constante evolução e descoberta de novas formas de expressão. Além disso, recomendo assistir a concertos, conviver e conversar com outros cantores e músicos. Isso ajuda a entender diferentes perspetivas e estilos de vida. Iniciar pequenos projetos de grupo pode também ser uma excelente forma de ganhar experiência. Desenvolver bons laços e amizades no meio é crucial, pois isso fazer toda a diferença no apoio e nas oportunidades que surgirão ao longo da carreira.
O que é para si a música?
Como performer, a música para mim é muito mais do que entretenimento ou exibição. É um veículo direto para o autoconhecimento e conhecimento do mundo ao nosso redor. Por vários motivos, sendo um deles o facto de lidarmos com pessoas muito diversas. Para além disso, tenho percebido que cantar é um exercício extremamente psicológico, pois, por um lado, obriga-nos a lidar com os nossos medos e inseguranças pela exposição que implica, e, por outro, convida-nos à compreensão e estudo emocional das personagens e das mensagens que o repertório implica. É também expressão da natureza humana e convida o performer a conhecer a sua própria humanidade e a dos que estão à nossa volta, podendo tornarmo-nos pessoas melhores. Se com esse processo tocarmos e inspirarmos os que nos ouvem e vêem, então penso que podemos estar num caminho para um mundo melhor.
* Joana Patacas - Assessoria de Comunicação e de Conteúdos
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