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Joana Marques

Gisela Sachse: o percurso singular de uma mezzo-soprano de coloratura

Atualizado: 22 de out.


Gisela Sachse, mezzo-soprano de coloratura

Por Joana Patacas*, em 07 de outubro de 2024



Gisela Sachse é uma das vozes mais versáteis do panorama lírico português. Natural de Vila Nova de Gaia, começou os seus estudos musicais em 1998 e tem vindo, desde então, a afirmar-se pela profundidade do seu timbre e pela agilidade vocal que lhe permite dominar o exigente repertório de coloratura. A sua capacidade de transitar entre a densidade emocional de uma mezzo-soprano e a leveza técnica necessária para os papéis de coloratura distingue-a como uma intérprete de rara sensibilidade e técnica.


“A música é a expressão do meu ser mais profundo. É tão essencial quanto o ar que respiro (…). Sem música, acho que simplesmente não seria eu. É quase como se sem ela, eu não existisse, ou pelo menos não existe esta versão de mim.”

 

O seu percurso tem sido enriquecido por atuações em produções nacionais e internacionais, sempre com uma abordagem rigorosa e apaixonada. Participou nos Concursos Internacionais de Canto Montserrat Caballé e Francisco Viñas e foi finalista do concurso Luísa Todi Jovens Músicos realizado em dezembro de 2015.

 

“Estava habituada ao ambiente protegido do conservatório e deparei-me com a crua realidade dos concursos. Foi um choque perceber a realidade do mundo competitivo da música.”

 

Ao longo da sua carreira, interpretou papéis de grande destaque em óperas icónicas, como Carmen, Mercedes, Donna Elvira e Rosina, tendo atuado em algumas das mais prestigiadas salas de espetáculo do país. Com uma formação sólida em Canto Teatral, tendo realizado a licenciatura e o mestrado sob a orientação da professora Fernanda Correia, Gisela também se aperfeiçoou com figuras como Enza Ferrari e Ambra Vespasiani. Estudou também técnica vocal e repertório com o maestro Marc Tardue e o tenor Paulo Ferreira, e atualmente aperfeiçoa-se sob a orientação da soprano Palmira Troufa.

 

“Carmen é uma mulher incrivelmente livre e aberta, que prefere sacrificar a própria vida do que se submeter às convenções sociais. Eu sou mais reservada, por isso obriguei-me a explorar esse lado mais ousado e destemido. Penso que toda a gente tem um pouco de Carmen dentro de si.”

 

No campo da Oratória, foi solista na Missa da Coroação e Requiem de Mozart, Gloria de Vivaldi, Stabat Mater de Pergolesi, Messias de Haendel, Missa in Augustiis de Haydn, 9ª Sinfonia de Beethoven, Oratorio de Natal de Saint-Saens, Stabat Mater de Dvořák e Stabat Mater de Karl Jenkins, obra interpretada pela primeira vez em Portugal, sob a direção do Maestro Jairo Grossi, Requiem de Verdi e Meditazione di Natale de Michele Varriale, obra interpretada pela primeira vez em em Portugal e dirigida pelo próprio compositor.

 

“Quero que os meus alunos se sintam arrebatados pela música. Talvez no futuro, se optarem por seguir esta carreira, as suas atuações permitam ao público evadir-se dos seus problemas por uma ou duas horas e sonhar durante esses momentos.”

 

Gisela é uma artista dedicada e talentosa, mas também uma pessoa de grande introspeção. Nesta entrevista à SMARTx, Gisela Sachse partilha com sinceridade a sua jornada artística, desde os primeiros desafios até aos momentos de grande realização, como a sua estreia no papel de Carmen em setembro de 2023. A entrevista revela os seus métodos de preparação, os desafios de uma carreira musical em Portugal, a sua vocação como professora de guitarra e de canto e a sua ligação emocional com a música.


Como é que descobriu a paixão pela música?

 

A paixão pela música sempre esteve presente. Tenho um fascínio pelos sons e melodias desde muito pequena. Recordo-me de que tinha sempre um rádio por perto porque não conseguia viver sem música. A minha timidez também desempenhou um papel importante na minha ligação com a música. Eu era muito reservada e a minha mãe, quando eu tinha cerca de 10 anos, apercebendo-se deste meu lado mais acanhado, insistiu para que eu aprendesse um instrumento musical. A princípio não queria, mas, apesar da minha resistência, ela inscreveu-me numa coletividade. Ainda tentei tocar flauta, mas não tinha jeito e não me sentia à vontade com o instrumento. Então, um dia, cheguei mais cedo à aula e vi uma guitarra pousada num canto. Curiosa, peguei-lhe e comecei a experimentar. Foi uma revelação! Os primeiros acordes que toquei magoaram-me os dedos, mas houve algo que despertou dentro de mim. Adorei aquela sensação, era como se aquela guitarra falasse diretamente comigo. Foi assim que encontrei o meu instrumento e comecei a dar os primeiros passos no mundo da música.

 

Existiam músicos na sua família?

 

O meu tio-avô, que não cheguei a conhecer, era músico amador e tocava vários instrumentos. Acabei por ficar com a sua guitarra, um instrumento raro, do qual sei só terem existido dois exemplares. A minha avó foi artista de teatro e ainda hoje, com 90 anos, me dá conselhos. No ano passado, quando me estava a preparar para o papel de Carmen [“Carmen” de Bizet] muitas das sugestões e indicações da minha professora Palmira Troufa lembraram-me de conselhos que a minha avó já me tinha dado. Sempre fomos muito próximas e ela contava-me sobre os tempos em que cantava e representava, mas naquela altura, devido à minha timidez, parecia-me completamente inconcebível a ideia de um dia subir ao palco e apresentar-me diante do público.

 

O canto lírico só se revelou uma paixão mais tarde?

 

Cresci sem ter uma noção clara do meu talento ou daquilo para o qual realmente tinha aptidão. O canto lírico apareceu mais tarde, sim, mas a determinada altura o canto passou a estar mais presente na minha vida. A coletividade onde estudava atribuiu-me uma bolsa para ir estudar viola dedilhada na Fundação Conservatório Regional de Música de Gaia e fazia parte da formação cantar em coro. Foi aí que me apercebi de que gostava muito de cantar. Na mesma altura, formei uma banda de rock com alguns amigos da escola. Tocava guitarra, claro, mas cantavam todos tão mal que também passei a ser a vocalista. Ensaiávamos na coletividade e dávamos alguns concertos. Tremia da cabeça aos pés da primeira vez que subimos ao palco. Até parti uma palheta… Tinha muita vergonha, mas, ao mesmo tempo, gostava muito do que estava a fazer. Ajudou-me a superar a minha timidez natural, permitindo-me começar a criar uma espécie de personagem que tomava o meu lugar no palco. Isto muito antes de imaginar que viria a ser cantora lírica. Naquela época o que eu gostava de cantar era rock e metal.

 

Quando é que começou a estudar canto?

 

Desafiei a minha irmã, que estudava violino, para experimentarmos aulas de canto. Acabámos por nos inscrever no Conservatório Regional de Gaia para frequentar aulas de canto livre. Na época, estava a terminar o meu curso de guitarra, dava aulas e estava a tirar a licenciatura em Estudos Europeus, um caminho que os meus pais incentivaram para garantir uma carreira fora da música. Contudo, esse envolvimento com o canto despertou algo em mim. Embora gostasse de tocar guitarra, percebi que a minha verdadeira paixão era o canto. Após concluir a licenciatura, decidi dedicar-me inteiramente à música e fiz o ano preparatório na Fundação Conservatório de Gaia com a professora Fernanda Correia, que me orientou tanto na licenciatura quanto no mestrado em Canto Teatral. Foi, sem dúvida, a melhor decisão que tomei.

 

Como foi estar sob a orientação da professora Fernanda Correia?

 

A professora Fernanda é uma pessoa extraordinária, muito querida. Comecei a trabalhar com ela numa fase mais avançada da sua carreira e tive o privilégio de ter alguém que reconheceu em mim potencialidades que eu não via. Ela e o professor Jairo Grossi, pianista acompanhador, escolhiam repertórios específicos para minha voz de mezzo-soprano e incentivavam-me a explorar o repertório de coloratura, apesar da minha resistência inicial e hesitação em aceitar desafios que, embora eu gostasse, considerava difíceis. Eles respondiam: "Sim, é desafiador, mas é o caminho certo para ti." A orientação deles foi decisiva, ajudando-me a desenvolver um amor genuíno pela minha arte e a reconhecer o caminho que minha carreira deveria seguir desde o início, mesmo que por vezes fosse difícil reconhecê-lo. A professora Fernanda também foi muito importante no que se refere à componente teatral, especialmente porque percebia que eu era mais introvertida. Incentivava-me a assumir a liderança nos papéis, a explorar mais. "Agora mostra-me o que consegues fazer", dizia ela, e eu hesitava: "Mas eu tenho vergonha." Ela insistia: "Faz. Faz. Faz." E isso acontecia à frente de todos, o que me obrigava a sair da minha zona de conforto. Por mais desconfortável que fosse, essa exposição era fundamental para que eu me habituasse a atuar sob pressão. Tínhamos aulas de interpretação cénica e estudo de ópera com exercícios práticos e simulações do ambiente teatral. Essas experiências deram-me ferramentas valiosas que mais tarde comecei a aplicar no meu trabalho profissional. Se não fosse por essa abordagem direta e desafiadora, acredito que não teria conseguido avançar na minha carreira. Ela sabia como tocar em pontos importantes, às vezes com pequenas frases que, na hora, pareciam insignificantes, mas que ainda hoje fazem todo o sentido.

 

Como foi o início da sua carreira?

 

Comecei a cantar a nível profissional em 2013, tanto no campo da ópera como no da oratória. Cantava muita coisa, mas continuava com dúvidas relativamente ao repertório que devia cantar. Interpretei diversos papéis e sabia que era muito versátil e tinha uma grande amplitude focal, capaz de abordar uma gama diversificada de personagens e estilos operáticos, mas ainda não sentia que tinha encontrado o meu caminho. Em 2019, comecei a estudar com a soprano Palmira Troufa, que veio confirmar o que já me tinha sido dito no Conservatório. Pediu-me para cantar uma ária de Rossini e confirmou que a coloratura era o meu repertório de eleição.

 

A partir daí começou a aceitar as características especificas da sua voz?

 

Sim, foi também um processo de desmistificação e de desconstrução da ideia de que a coloratura é apenas para vozes pequenas e leves, o que não é verdade. Inicialmente, tinha a impressão de que, optando por esse caminho, limitar-me-ia a interpretar apenas um tipo específico de peça. No entanto, à medida que avancei, percebi que não era bem assim. A coloratura, embora técnica e desafiante, revelou-se apaixonante. Contudo, questionava-me se seria capaz de sustentar uma ópera inteira com essa técnica, dada a sua complexidade. Era difícil imaginar se poderia realmente fazer isso. Mas então percebi que não se tratava apenas de seguir esse estilo; havia uma variedade de papéis que poderiam ser explorados.

 

De certa forma, os seus professores acreditaram mais nas suas capacidades do que você própria?

 

Sim, eles viram em mim o que eu não conseguia ver por mim mesma. Até a mestra Enza Ferrari, com quem fiz várias masterclasses, notou algo na primeira vez que me ouviu. Durante um simples aquecimento, ela olhou para mim e disse de imediato: "Rossini." Isso deixou-me a pensar: como é que ela conseguiu ver isso? Nem sempre temos a intuição ou o conhecimento para saber o que é mais adequado para nós. Só comecei a explorar esse tipo de repertório a sério há apenas um ano e, desde então, todos confirmam que é esse o caminho a seguir. Mas, talvez, só agora tenha sido o momento certo. Antes, talvez não tivesse resultado, talvez técnica e psicologicamente não estivesse preparada. Havia sempre uma resistência interna, um pavor. No passado, houve vezes em que tive de cantar áreas de coloratura em recitais e, cada vez que subia ao palco, sentia como se fosse a última vez, como se fosse literalmente "cantar e morrer". Era uma sensação de nervosismo extremo, porque ainda não sentia verdadeiramente a música dentro de mim, ainda não tinha desabrochado essa paixão e confiança.

 

Participou em competições nacionais e internacionais. Qual a sua opinião relativamente aos concursos?

 

Logo após ter terminado a licenciatura, em 2011, participei em concursos internacionais, e só mais tarde, em 2015, fui finalista no concurso Luísa Todi Jovens Músicos. Olhando para trás, devia ter sido ao contrário, porque o primeiro contacto que tive com essa realidade não foi muito positivo. Nessa altura, estudava técnica vocal e repertório com o maestro Marc Tardue e foi ele que me incentivou a participar no Concurso Internacional de Canto Montserrat Caballé. Fui a única portuguesa aceite nesse ano. A minha chegada a Saragoça foi um choque. Estava habituada ao ambiente protegido do conservatório e deparei-me com a crua realidade dos concursos. Ao chegar ao teatro, não conhecia ninguém, e o ambiente era impessoal e frenético, muito diferente da camaradagem que esperava encontrar. Tive um ensaio marcado com um pianista e, enquanto tentava pedir informações num local cheio de gente, senti-me completamente deslocada, como se tivesse levado um balde de água fria. Todos pareciam focados apenas em si mesmos, preocupados em ganhar, sem qualquer interesse em socializar. No dia seguinte, durante a primeira eliminatória, o choque foi ainda maior. Ao chegar ao local das provas, encontrei um ambiente altamente competitivo e intimidante. Cantoras com vestidos esplêndidos e maquilhagem impecável aqueciam e avaliavam-se umas às outras, e eu senti-me completamente fora do meu elemento, questionando-me sobre o que estava a fazer ali. Era um mundo de competição pura, muito diferente do que tinha idealizado.

 

Não se sentiu confortável nesse ambiente tão competitivo?

 

Não, porque era uma atmosfera muito áspera, onde se sentia uma tensão constante. Todos estavam concentrados em avaliar se alguém poderia ser melhor do que eles e sento que se pudessem me fulminavam apenas com o olhar. Não estava habituada a este tipo de ambiente, pois no Conservatório vivi numa atmosfera de encorajamento e entreajuda. Foi um choque perceber a realidade do mundo competitivo da música.

Apesar disso, houve pontos positivos, como ter a oportunidade de conhecer a Monserrat Caballé, o que foi, sem dúvida, uma honra e uma experiência fantástica. Mas, no geral, foi realmente uma experiência dura. Não passei na primeira eliminatória. Tremia tanto que cheguei a pensar que não conseguiria continuar. O ambiente era muito inóspito, não me sentia à vontade, e não tinha aquela atitude agressiva de competição, que parecia necessária ali. Isso afetou a minha motivação. Era mais nova e menos calejada nessas lides. Em comparação, o concurso Luísa Todi Jovens Músicos foi uma experiência completamente diferente. O ambiente era competitivo, sim, mas havia um espírito de camaradagem e entreajuda. As pessoas elogiavam umas às outras e estavam dispostas a dar e receber conselhos. Talvez por ser um concurso nacional e por já ter alguma experiência profissional, senti-o mais leve e acolhedor.

 

Como é que essas experiências contribuíram para a sua carreira?

 

Os concursos servem como uma forma de ganhar experiência. Quando participei no concurso Luísa Todi, já me sentia mais confiante nas minhas capacidades vocais. A motivação era, claro, o reconhecimento e a experiência em si, além de ser uma oportunidade para crescer, conhecer outros cantores e ampliar a minha presença no palco. Apesar das dificuldades e do ambiente por vezes limitador dos concursos, eu repetiria tudo. No entanto, é importante notar que as vozes mais graves, como a minha, precisam de mais tempo para amadurecer, o que pode ser desvantajoso em concursos que geralmente favorecem vozes que se desenvolvem mais rapidamente, como sopranos e tenores. Não é uma questão de idade, ainda que compreenda que os concursos sejam destinados a cantores no início de carreira. Contudo, a realidade é que as vozes mais graves não estão maduras aos 20 anos. Percebe-se isso claramente quando assistimos a uma atuação e notamos que algo está a faltar nessas vozes — simplesmente ainda não atingiram a maturidade necessária. Admito que, ao mencionar isto, possa estar a defender os meus próprios interesses, mas é uma realidade com a qual me deparo.

 

Qual foi o papel mais desafiante que interpretou?

 

Foi o papel de Carmen na ópera Carmen de Bizet, em que me estreei em setembro de 2023 no Coliseu do Porto. Curiosamente, foi por causa deste papel que decidi estudar canto lírico. Naquela época, quando ainda estava a estudar canto livre no Conservatório, participei com a minha irmã, que é ilustradora e designer gráfica, num workshop de caracterização com Ron Freeman, que trabalhou como caracterizador no Covent Garden e na Holland Park Opera. Foi uma experiência incrível, e ainda hoje utilizo algumas das dicas de caracterização que aprendemos. Paralelamente, estavam decorrer os ensaios para a ópera Carmen, na altura protagonizada pela mezzo-soprano Maria Luísa de Freitas e pelo tenor Paulo Ferreira – com também estudei técnica vocal e repertório –, sob a direção de Marko Letonja. Assistimos a um ensaio aberto e lembro-me de estar sentada nas cadeiras da orquestra com minha irmã e dizer: "Um dia, vou ser eu a estar ali em cima." Foi um momento decisivo, o rastilho que acendeu tudo. Em fevereiro deste ano, encontrei a Maria Luísa numa audição na Gulbenkian. Com toda a minha timidez, mas cheia de coragem, aproximei-me e contei-lhe sobre aquele momento. Ela emocionou-se e felicitou-me por ter concretizado esse sonho ao ter interpretado esse papel no ano passado.

 

Como é que se preparou?

 

Tive cerca de um ano e pouco para me preparar. Já tinha assistido a várias encenações, lido e cantado o papel, mas nunca me identifiquei com a ideia de que ela fosse uma mulher vulgar. Pelo contrário, quis transmitir a força de uma mulher numa época dominada por homens, que não se traduzia em vulgaridade, mas em poder. Carmen é uma mulher incrivelmente livre e aberta, que prefere sacrificar a própria vida do que se submeter às convenções sociais. Eu sou mais reservada, por isso obriguei-me a explorar esse lado mais ousado e destemido. Penso que toda a gente tem um pouco de Carmen dentro de si. Mesmo que não seja de forma consciente, esse poder feminino está lá e é através dele que a mulher se pode libertar dos espartilhos de uma sociedade onde ainda existem resquícios de machismo e masculinidade tóxica, especialmente nos países latinos. Quis transmitir com a minha atuação que a Carmen é uma figura que desafia e subverte as expectativas de poder masculino, mostrando que o poder deles pode ser mais frágil do que parece. Não sei se consegui. Não me consigo autoavaliar dessa forma.

 

O que sente quando está no palco a interpretar a personagem?

 

Quando me vejo a cantar, é estranho, porque reconheço que sou eu, mas não me reconheço completamente. É como se fosse o meu corpo, mas não a minha alma. Penso que isso acontece porque, em palco, encarnamos e transcendemos, a personagem. A este propósito, recordo-me do que me disse o maestro Marc Tardue enquanto estudava com ele um papel dramático: "Um cantor é um ator. Não vais para o palco para te emocionares; não és tu, é a personagem. Tens que conhecer exatamente todos os sentimentos e emoções que a personagem precisa e vais usá-los, mas não vais senti-los. És uma espetadora de ti própria, porque no momento em que te fundes com a personagem e te emocionas, o espetáculo acaba."

 

Qual é o risco de se fundir com a personagem?

 

O risco é a perda do controlo emocional, o que vai afetar diretamente a performance, tanto a nível interpretativo como vocal. Ao entrar profundamente na dor e nas emoções da personagem, o cantor pode achar difícil dissociar-se e regressar a si mesmo após a performance, mas não deve levar esses sentimentos para fora do palco. Quando encarno um papel é como se estivesse a manobrar a personagem como se ela fosse uma marioneta. Utilizo os meus conhecimentos e experiências emocionais para criar uma realista, mas emoções que expresso em palco não são minhas. Os papéis operáticos mais complexos exigem alguma maturidade. Se eu tivesse interpretado Carmen mais cedo na minha carreira, provavelmente não teria sido capaz de captar a essência da personagem além da superfície.

 

Também faz muitas atuações no campo da oratória. Qual é a diferença entre cantar numa ópera e num concerto?

 

Inicialmente, pode parecer que a principal diferença está em ter uma personagem que me "veste" na ópera, enquanto num concerto estou mais exposta. No entanto, isso não é verdade. Em ambos os contextos, encarno uma personagem. Na ópera, essa personagem é claramente definida pelo libreto e pela encenação; nos concertos sou uma versão de mim mesma que é construída para aquele momento. É a personagem de mim própria, mas não que não corresponde à Gisela do dia-a-dia. Este é um trabalho muito duro que exige muita entrega e profissionalismo e sinto-me mais confortável se estiver protegida por essa armadura metafórica que só mostra a faceta profissional. As pessoas que assistem aos meus concertos comentam com frequência que transmito uma grande calma enquanto canto, mas internamente, há sempre um tumulto a ocorrer. Com o tempo, fui aprendendo a controlar o medo e a ansiedade, embora o medo de falhar esteja sempre lá. No entanto, passada essa sensação inicial, o corpo e a mente entram em modo automático, e eu sinto como se estivesse num filme. Nesse momento, parece que não há público, é apenas um filme que se desenrola e eu sou parte dele.

 

 

Também é professora de guitarra e de canto. Quais os ensinamentos que transmite aos alunos?

 

Adoro dar aulas aos mais pequenos que despertam o meu lado mais infantil. É necessário manter essa inocência, especialmente porque eles estão numa fase de descoberta musical e deslumbram-se muito facilmente com a música, o que é maravilhoso de assistir enquanto professora. Quanto aos alunos mais velhos, o desafio é diferente. Não se trata apenas de transmitir o amor pela música ou as bases técnicas, mas de incentivá-los a explorar o que têm dentro de si. Vejo um pouco de mim em cada aluno e isso fascina-me. É como voltar no tempo e encontrar-me no papel daquela professora que um dia me inspirou sem eu ter plena noção do impacto que ela teria na minha vida. Procuro transmitir a minha paixão pela música e que este é um amor que cresce continuamente. Quero que os meus alunos se sintam arrebatados pela música. Talvez no futuro, se optarem por seguir esta carreira, as suas atuações permitam ao público evadir-se dos seus problemas por uma ou duas horas e sonhar durante esses momentos.

 

O que é que faria de diferente no início da sua carreira sabendo o que sabe hoje?

 

Teria começado mais cedo e procurado oportunidades no estrangeiro. Embora tenha o desejo de continuar a cantar no meu país, reconheço que lá fora os cantores são mais valorizados. Ainda aspiro viver essa experiência. Em Portugal, existem oportunidades e tenho tido várias, mas os promotores não pagam o suficiente para que seja possível viver exclusivamente da música. Isso está errado e é muito ingrato porque, embora o público só veja o momento da performance, há muito trabalho por detrás de uma atuação. Ninguém nos paga os longos períodos de estudo que realizamos em casa e o investimento pessoal que isso implica. Tenho que equilibrar a minha carreira musical com outras atividades que garantem a minha subsistência e fazer a gestão entre os ensaios e as aulas, porque para estar presente nesses compromissos tenho de encontrar alguém que me substitua.

 

Como é que ocupa os seus tempos livres?

 

Nos meus tempos livres, adoro visitar castelos e explorar a natureza, seja através de caminhadas ou simples passeios ao ar livre. Também me dedico à meditação, o que, apesar de ser um desafio, tem sido extremamente benéfico. Comecei a praticar há cerca de um ano e foi a melhor decisão que tomei, especialmente porque sou uma pessoa muito ansiosa. A meditação ajudou-me a encontrar um certo equilíbrio e a criar um refúgio para escapar dos tumultos emocionais que por vezes enfrento. Precisava desse espaço para encontrar paz.

 

O que é para si a música?

 

A música é algo tão intrínseco à minha existência que é difícil descrever em palavras. Desde que me lembro, a música sempre fez parte de mim. Mais do que uma presença; é quase uma extensão do meu ser. Esta é uma questão simultaneamente simples e ao mesmo tempo complexa. A música é a expressão do meu ser mais profundo. É tão essencial quanto o ar que respiro, e está presente em tudo, no movimento das folhas, no som dos carros que passam, no canto dos pássaros. Não me consigo imaginar sem música. Sem música, acho que simplesmente não seria eu. É quase como se sem ela, eu não existisse, ou pelo menos não existe esta versão de mim.


Joana Patacas - Assessoria de Comunicação e de Conteúdos


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