Por Joana Patacas*, em 16 de setembro de 2024
Leonardo Hilsdorf é um exemplo luminoso do talento que a nova geração de pianistas brasileiros tem para oferecer ao mundo. A sua virtuosidade e sensibilidade musical têm encantado as plateias nas suas apresentações no Brasil, Estados Unidos e Europa e conquistado a aclamação da crística especializada.
"Técnica transcendente sustentada por bela musicalidade." Jornal L'Indépendant, França
Formado pela prestigiada Universidade de São Paulo, Leonardo aprimorou os seus estudos com mestrados no New England Conservatory de Boston e na escola de música de Colónia, na Alemanha. A sua trajetória foi enriquecida pela experiência única de ser um dos seletos solistas em residência na Capela Musical Rainha Elisabeth da Bélgica, onde trabalhou sob a orientação da renomada pianista Maria João Pires, que é a sua mentora.
“Com Maria João Pires aprendi que o piano era um mero veículo para expressar em sons o sublime que os grandes compositores nos deixaram. Ela me fez olhar as coisas de uma maneira bastante diferente, como se o piano deixasse de ser um instrumento e o meu próprio corpo passasse a ser o instrumento.”
A sua carreira tem sido marcada por uma série de conquistas notáveis, incluindo primeiros prémios em diversas competições internacionais. As suas performances têm sido descritas como "fenomenais" e "magistrais" pela crítica especializada, levando-o a apresentar-se em alguns dos palcos mais prestigiados do mundo, como o Concertgebouw de Amsterdão e a Maison de la Radio em Paris.
Atualmente, Leonardo reside em Lisboa, onde, paralelamente à sua atividade artística e pedagógica, acaba de concluir sua tese de doutoramento em Estudos da Cultura, na Universidade Católica Portuguesa. Esta nova fase da sua carreira reflete o seu interesse em explorar as intersecções entre música, cultura e sociedade.
“Costumo dizer que, apesar de amar a música e não imaginar a minha vida sem ela, acredito que a posição de amador de qualquer arte é, no fundo, uma posição privilegiada. A relação do amador com a arte é puramente de amor.”
Nesta entrevista exclusiva à SMARTx, Leonardo Hilsdorf dá-nos a conhecer mais sobre a sua trajetória pessoal e musical. Desde as suas primeiras memórias ao piano até os desafios de uma carreira internacional, o artista partilha reflexões sobre a sua formação, as suas experiências e aspirações, bem como a sua visão sobre o papel da música na sociedade e o compromisso contínuo com a excelência musical.
Quais são as suas primeiras memórias relacionadas com a música?
Minha avó materna era pianista amadora e era muito dedicada: me levava nas aulas, comprava as partituras e os pianos, e procurava bons professores. Ela tentou fazer com que as quatro filhas estudassem piano, mas todas acabaram por seguir medicina e hoje são médicas. Depois, ela incentivou os dez netos a aprenderem piano também. Até que, enfim, um deu certo! A minha primeira memória musical é da minha avó tocando modinhas ao piano. Me lembro de mim e do meu irmão, que é mais velho do que eu, nos debruçando sobre o piano e cantando a melodia junto com o que a minha avó tocava. Era quase uma brincadeira lúdica. Acho que essa é a minha primeira memória pianística.
Ainda se lembra das suas primeiras aulas de piano?
Comecei com aulas particulares de piano. Foi um excelente primeiro contacto com o instrumento, pois a minha professora tinha uma didática muito enriquecedora para as crianças. Acredito que, nesse primeiro momento, é crucial estimular a curiosidade e despertar algum tipo de amor e afeto pela música. E essa professora foi extremamente bem-sucedida nesse aspeto, porque eu contava os dias da semana para chegar às aulas de piano. Eu também fazia muitas outras atividades extracurriculares, como natação e inglês, mas as aulas de piano eram sempre as que eu aguardava com mais ansiedade.
Concretizou o sonho da sua avó ao se tornar músico profissional?
Acho que não havia essa expectativa, porque não há nenhum músico profissional na minha família. Ela via na música um valor de vida. Então acho que ela incentivou e deu a oportunidade para todos estudarem música e carregar isso consigo. E de facto, dos 10 netos, eu fui o único que virou músico profissional.
E quando é que se apercebeu de que queria uma carreira na música?
Foi mais tarde, já numa fase pré-universitária. Por não vir de uma família de músicos profissionais, o meu amor e dedicação estavam puramente direcionados à música e ao fazer pianístico. Demorei para pensar nisso como uma profissão, principalmente devido às muitas incertezas e medos associados não só à música, mas a qualquer carreira artística. O sistema universitário brasileiro é muito diferente do português, no sentido de que o acesso não é feito através de todo o histórico escolar, mas sim por meio de uma prova. Você tem apenas uma chance para entrar na universidade que desejar. Eu estudei num colégio muito voltado para esses anos de entrada no ensino superior, que chamamos de "vestibular". Nesse colégio, nenhum dos meus colegas ou suas famílias queria se tornar, se tornou ou gostaria de se tornar um artista ou músico profissional. Nesse sentido, a minha escolha profissional foi bastante exótica, por não estar cercado dessa realidade nem no ambiente de amizade social do colégio, nem no ambiente familiar.
E acabou por ir estudar música para a Universidade de São Paulo (USP). Como é que foi esse período?
Sim, e tive um ótimo professor que me incentivou a abordar a música de maneira mais profissional, especialmente em termos de dedicação. Afinal, profissionalizar-se exige um grande investimento de tempo, energia e vitalidade. Comecei a fazer esse investimento a partir do momento em que ingressei na USP.
Porque é que decidiu fazer um mestrado em Boston, nos Estados Unidos? Foi em busca de novas oportunidades?
Decidi ir para os Estados Unidos porque o meu professor da USP havia estudado com outros professores em Boston, então foi um caminho meio natural a seguir.
No entanto, não diria que procurei apenas oportunidades. Acredito que no Brasil, assim como em Portugal e noutros países europeus, com a grande facilidade de movimentação, já existe uma geração muito bem treinada que foi estudar nas fontes e retornou aos seus países. Portanto, em termos educacionais, hoje em dia é até discutível se é realmente necessário ter essa experiência no exterior. A minha motivação foi estar num ambiente mais estimulante. Embora os estrangeiros não vão ao Brasil especificamente para estudar música, muita gente do mundo inteiro vai aos Estados Unidos com esse propósito, incluindo asiáticos, europeus e latinos. É um ponto de encontro que naturalmente eleva o nível de exigência. Considero importante estar num ambiente com esse grau de estímulo, porque isso também te impulsiona a ir mais longe. Como dizem, "o homem é o que vê", então, ao ter contacto com mais músicos e experiências, você se sente motivado a alcançar patamares mais altos.
Foi um período muito desafiante?
Confesso que foi um período bastante duro da minha vida. Quando me mudei para os Estados Unidos pela primeira vez, eu tinha apenas 19 anos. Foi a minha primeira experiência morando sozinho, num lugar completamente diferente do Brasil em termos de clima, cultura e tudo mais. Diria que enfrentei um choque cultural e um choque de transição, saindo da casa dos meus pais para encarar o mundo e a vida adulta. Estive lá dois anos e foi um processo intenso de adaptação e crescimento pessoal. Além de lidar com as diferenças culturais e o afastamento da minha família, também precisei aprender a ser independente e a gerenciar todas as responsabilidades que acompanham a vida longe de casa.
Ainda assim, não regressou para o Brasil. Porque é que veio para a Europa?
É verdade. A minha primeira parada na Europa foi Paris. Naquele momento, foi uma questão de escolher onde eu gostaria de construir a minha vida. Não tinha certeza se seria em Paris, e acabou não sendo, mas havia uma coisa da qual eu tinha convicção: não seria nos Estados Unidos ou no Brasil. Embora eu admire muitos aspetos da cultura americana, não foi uma cultura com a qual me identifiquei profundamente ou me senti mais em casa. Além disso, com 21 anos, mesmo depois de terminar o mestrado, eu ainda não me sentia completamente preparado como pianista. Havia em mim a vontade de continuar buscando meu desenvolvimento e de procurar algo que, naquela época, eu ainda não sabia bem o que era. Minha decisão de ir para a Europa foi motivada por essa reflexão. Queria encontrar um lugar onde pudesse me estabelecer e me sentir mais conectado culturalmente. Mesmo sem saber exatamente onde seria, tinha certeza de que queria explorar as possibilidades que o continente europeu poderia oferecer.
Nessa época, a nível pianístico, qual era a peça ou compositor que mais o desafiavam?
Nos meus 20 anos, a minha relação com Beethoven era um pouco paradoxal. Eu gostava cada vez mais da sua música, porque, enquanto adolescente, não era a minha primeira escolha. No entanto, ainda tinha dificuldade em compreender plenamente esse universo. Havia um conflito dentro de mim: amava profundamente Beethoven, mas, ao mesmo tempo, sentia-me sempre um pouco acanhado, talvez até tímido, diante da sua obra. Isso se aplicava não apenas ao seu mundo musical, mas também ao seu mundo técnico pianístico, que é bastante particular. Acredito que o meu encontro com Maria João Pires, logo após a minha estadia em Paris, foi determinante para superar esse desafio. Foi quando realmente compreendi Beethoven, Schubert e o repertório do período clássico, que é o repertório central dela, de uma maneira menos técnica e mais metafísica. Entendi por que aquela música me atraía e fascinava tanto. Ao compreender esse aspeto mais emocional e filosófico, senti-me muito mais confortável em abordar esse repertório vienense clássico.
E atualmente?
Atualmente, o mundo em que ainda quero me aprofundar mais é o de Bach. No entanto, há também um certo dilema nisso. Ao mesmo tempo em que desejo vivenciar essa música por mim mesmo, como intérprete, também existe quase uma escolha de manter uma certa distância. Isso me permite ouvir, apreciar e amar a música de Bach como ouvinte, de uma maneira mais pura.
Acha que, ao desconstruir e analisar profundamente uma obra, o intérprete corre o risco de se distanciar da pureza e do encantamento que um ouvinte experimenta ao se entregar ao simples prazer de a escutar?
Sem dúvida. O mundo de Bach é um que eu ainda desconheço enquanto intérprete e, por isso, me alimenta tanto enquanto ouvinte. Isso é importante, não é? Porque parece que, às vezes, quanto mais você percebe e analisa algo, em um processo de desconstrução da obra de arte, perde-se um pouco daquela magia inicial, aquela ingenuidade com que você ouve e absorve a música. Costumo dizer que, apesar de amar a música e não imaginar a minha vida sem ela, acredito que a posição de amador de qualquer arte é, no fundo, uma posição privilegiada. A relação do amador com a arte é puramente de amor. Não existe esse lado de desconstrução profissional, em que você tem que entender a obra de dentro, compreender todas as subtilezas, estruturas e arquitetura de uma maneira muito mais técnica.
Há pouco mencionou o contributo de Maria João Pires na sua formação. Como é que foi a experiência de trabalhar diretamente com esta grande pianista?
Trabalhar com Maria João Pires foi realmente um ponto de virada na minha vida, em muitos aspetos. Eu sempre a admirei profundamente como pianista, muito antes de imaginar a hipótese de ser aluno dela. Até então, ela nunca havia dado aulas formais numa instituição, então foi uma oportunidade rara e bastante temporária quando ela se tornou professora na Capela Rainha Elizabeth da Bélgica, onde fiz uma residência de dois anos. Me lembro do momento em que fui fazer a audição para a classe dela. Foi um ato de coragem, porque eu não a conhecia pessoalmente e não havia tido nenhum contacto prévio. Custou-me muito conseguir ir fazer essa prova, porque tocar diante de um dos seus ídolos, numa situação de julgamento, é um momento decisivo e tenso, especialmente para um jovem. Mas depois percebi que com ela não havia nada disso. A Maria João foi diferente de tudo que eu já havia experimentado antes em termos de educação musical. As aulas com ela não eram mais sobre tocar piano. Aprendi que o piano era um mero veículo para um diálogo mais profundo com o compositor e com o texto musical, partindo de algo técnico que já deveria ter sido alcançado e desenvolvido. Ela me fez olhar as coisas de uma maneira bastante diferente, como se o piano deixasse de ser um instrumento e o meu próprio corpo passasse a ser o instrumento. Ela fala muito sobre a relação física com o instrumento durante as aulas, porque isso muda tudo, desde o som até a expressão artística. Acredito que a Maria João possui um talento tocado por algo divino, algo realmente muito especial. Ela tem um entendimento do discurso de cada compositor que transcende o lado técnico, é quase uma ligação pessoal e espiritual. Ela é uma mensageira de um valor elevado, sempre presente nas obras de Beethoven, Schubert, Mozart e outros grandes génios - que se perpetuam até hoje como um bem da humanidade, é porque ainda nos dizem algo muito relevante para a nossa condição humana. Ela compreende isso certamente muito melhor e de maneira mais íntima do que todos nós. Ter tido contacto com essa experiência foi algo imensurável, não apenas para a minha carreira, mas para a vida como um todo.
Qual foi a sua primeira grande performance?
Eu me apresento em público desde muito cedo, mas me lembro que, logo após começar a estudar com Maria João Pires, tive a minha grande estreia no Brasil com uma grande orquestra. Fui convidado para participar da série "Pianistas da Orquestra Sinfônica Brasileira", que é uma série focada exclusivamente em piano e na qual o pianista tem que tocar dois concertos na mesma noite, o que por si só já é um pouco desafiador. Sabemos o quanto isso é exigente fisicamente. Além disso, foi num final de semana. Toquei dois concertos no sábado e dois concertos no domingo – o Concerto n. 2 de Saint-Saëns e o Concerto n. 4 de Beethoven. Foi uma verdadeira maratona. Considero essa experiência como um passo significativo no que se refere a me sentir pronto para dar grandes concertos com grandes orquestras. Não que eu estivesse completamente pronto, mas ao menos adquiri a coragem necessária para enfrentar esses desafios.
Recebeu o primeiro prémio em diversas competições internacionais na Alemanha, França, Itália, Espanha, Portugal, México e Brasil. Qual a sua relação com este lado mais competitivo da música?
É uma relação muito conflituante. Quando estudei com Maria João Pires, uma das condições era que nós parássemos de fazer concursos, porque ela realmente não acredita nisso e acha que prejudica muito o fazer musical. Em muitos aspetos, concordo com essa ideia também. Acredito que a arte e o ensino não têm nada a ver com concursos e julgamentos. Como você vai dizer que uma interpretação é melhor que outra, depois de um certo nível técnico? Quando estamos falando de concursos internacionais, as pessoas estão muito bem preparadas ao nível instrumental, então é uma questão completamente subjetiva, quase aleatória. É como olhar para um quadro e dizer "eu prefiro aquele a este", mas apenas por uma questão de preferência subjetiva, de gosto. Ao mesmo tempo, eu seguia um pouco esse caminho dos concursos porque achava que isso abria algumas oportunidades de apresentação e de concertos, o que de fato aconteceu. No entanto, para mim, sempre era um esforço enorme participar dos concursos, até emocionalmente, não só em termos de trabalho. Eu estava sempre tentando chegar no meu melhor naquele momento, o que envolvia um grande esforço de preparação, uma verdadeira maratona para tentar alcançar um lugar onde eu ainda não estava. Nesse ponto, foi benéfico. Como dizem algumas pessoas, e eu também acredito, o concurso termina no momento em que você sai de casa para fazer a primeira prova. O que você ganhou, você já ganhou. O resto é uma ilusão. Para outras atividades, talvez essa competição funcione, mas para a música, a questão certamente não é quem chega antes. Concursos são apenas uma vitrine, mas os ganhos reais estão na preparação.
Quais são os seus objetivos para o futuro?
Essa é uma pergunta difícil. Acho que não paro muito para pensar no futuro, vivo muito para o presente. Mas fiz esse doutoramento na Universidade Católica Portuguesa e tive essa trajetória académica porque dar aulas é algo de que gosto muito e me estimula. Gostaria de seguir também nessa vertente, talvez poder dar aulas no ensino superior, preparando pessoas de uma maneira mais profissional para a música. Ao mesmo tempo, quero continuar desenvolvendo a minha carreira, não só a parte comercial do trabalho, que é também a subsistência, mas sobretudo a parte de realização e contentamento artístico pessoal. Há algumas obras que gostaria de explorar e algumas experiências que gostaria de viver como intérprete relacionadas a essas obras. Mas no fundo, acho que não tenho grandes expectativas. Aprendi nesses anos a tentar viver um dia de cada vez, e ter os olhos mais voltados para o presente e não tão focados lá na frente. Fazer planos para o futuro é uma ilusão, assim como a própria definição de sucesso. No fundo, o que eu espero do futuro é estar em pleno contentamento com o que tenho e com o que é a minha vida.
O que é que o motivou a fazer um doutoramento na Universidade Católica?
O primeiro doutoramento que fiz foi em Estudos Culturais com uma vertente de administração cultural, algo muito diferente de toda a minha carreira que, até então, era completamente voltada para a performance. Na época, eu morava em Paris e pensei que gostaria de ver e entender o que eu fazia, o meu métier e a música de uma maneira mais ampla. Queria ver como a música se situa na cultura e na vida das pessoas e qual o seu valor social. No fundo, também foi uma busca interior. A minha tese acabou, claro, se relacionando com o piano, mas também envolveu esse grande campo da cultura. O tema foi sobre criatividade em performance, mas com um viés de cognição cultural, explorando como as diferentes culturas e tradições entendem a criatividade do intérprete clássico. Foi uma oportunidade de ampliar meus horizontes e aprofundar minha compreensão sobre o papel da música e do artista na sociedade, indo além dos aspetos técnicos e interpretativos. Esse processo de pesquisa e reflexão contribuiu para o meu crescimento não apenas como músico, mas também como indivíduo e agente cultural. O doutoramento na Católica é uma ampliação destes questionamentos.
Atualmente vive em Lisboa. Como é que se deu a decisão de vir para Portugal?
Foi uma combinação de fatores naquele momento da minha vida. Eu tinha acabado de concluir meu ciclo de estudos com a Maria João Pires na Bélgica, e ela havia retornado a Portugal. Então, havia um desejo de estar próximo dessa fonte de inspiração. Além disso, foi uma escolha de vida. Tenho uma carreira bastante ativa no Brasil, e é muito mais fácil chegar lá partindo de Portugal do que de outros lugares onde eu havia morado, como Paris. Portugal também oferece uma qualidade de vida e um conceito de vida que me atrai. Paris não é propriamente um lugar fácil para se viver para quem não é parisiense, então essa mudança fez sentido naquele momento.
O ensino também é uma parte importante da sua carreira. O que espera transmitir às aos seus alunos?
Neste momento, tenho uma classe bastante variada de alunos particulares aqui em Lisboa, uma mistura de adultos e crianças, mas sobretudo de amadores. Gosto muito de ensinar amadores porque, para mim, é quase como apresentar e desvendar os mistérios de um universo musical riquíssimo, algo que considero uma mais-valia para a vida de todo ser humano. Como mencionei antes, os amadores estão numa posição privilegiada de poder desfrutar da música sem nenhuma pressão de carreira, trabalho ou métier. Isso é algo que me agrada bastante, pelo que nas minhas aulas busco transmitir esse encantamento inicial que as pessoas têm pela música e cultivar a capacidade de usufruir e fruir da música de uma forma mais livre de preconceitos. No entanto, também tenho me preparado para eventualmente dar aulas no ensino superior, lidando com uma geração que deseja levar adiante a tradição da música de concerto.
Como é que equilibra este tipo de atividades académicas e pedagógicas com as exigências da sua carreira internacional?
É um grande desafio, principalmente devido à falta de rotina e às diferenças horárias que as viagens implicam. Confesso que, com a idade, tenho gostado cada vez menos dessa parte de deslocamentos, pois é uma vida um pouco incomum. Para o futuro, busco uma vida mais centrada, trabalhando mais com a música dentro da comunidade onde vivo. Isso porque uma parte importante do meu trabalho, que a Maria João também incentivava muito e era quase um pré-requisito quando estudávamos com ela, é devolver a música que recebemos à sociedade de alguma maneira. Nesse sentido, tenho um projeto online chamado “Acordes para a Liberdade”, onde eu e um professor ensinamos piano a adolescentes retidos num presídio do Paraná, no Brasil. Esperamos, através da música e de todo o seu universo de justiça e beleza idealizada, plantar uma sementinha nesses jovens que certamente erraram, para que possam, junto com a música, repensar os caminhos que escolheram. Quanto mais os anos passam e experimento diversas coisas na carreira, entendo que isso dá um significado maior para o meu trabalho, por vezes até maior do que um grande concerto.
Tem passatempos que não incluam a música e o piano?
Sim, tenho muitos passatempos. Primeiro, tenho que cuidar da minha vida particular e da casa, o que já ocupa bastante tempo. Além disso, tenho tentado me aprofundar cada vez mais em algumas práticas, como a meditação, que faço todos os dias, e o ioga, que pratico com certa regularidade. Inclusive, recentemente, comecei a estudar o budismo, ainda que de forma inicial. Acredito que tudo está, de alguma maneira, interligado e conectado, inclusive com o fazer musical. Também gosto muito de jardinagem. Tenho um pequeno jardim onde moro e me ocupo bastante dele. E, por mais paradoxal que possa parecer, gosto muito de viajar a lazer. Explorar novas culturas e ver coisas novas é uma experiência que me enriquece de muitas maneiras, inclusive como artista.
Qual poderia ter sido a sua profissão se não fosse músico profissional?
Essa é uma pergunta que me acompanha até hoje, mas, no fundo, não sei a resposta. Acredito que a gente nunca vai saber o que poderia ter sido ou o que poderá ser, porque só estando numa profissão é que realmente conhecemos o seu dia-a-dia. O certo é que não imagino a minha vida sem música. Isso é um fato consumado que me trouxe até aqui. Venho de uma família em que meu pai, minha mãe, 90% dos meus tios e primos são médicos. Existe um fascínio por essa profissão, em ver o reflexo do seu trabalho na comunidade, na sociedade e no outro. O bem que você faz ao outro, visto talvez de maneira até mais imediata na medicina, me fascina bastante, apesar de saber que também é uma romantização da profissão. Mas, se não fosse músico profissional, talvez tivesse seguido a tradição familiar e me tornado médico. No entanto, a música é uma parte tão essencial de quem eu sou que é difícil imaginar uma vida sem ela como elemento central.
Que conselhos pode dar aos jovens instrumentistas que estão a iniciar as suas carreiras?
O conselho que dou a mim mesmo até hoje e que posso partilhar é: mantermo-nos fiéis e honestos àquilo que nos move. A vida é um pouco isso, é movimento, é uma busca constante. Acredito que é necessário ter algo que nos impulsione para a frente.
No caso da música, independentemente da carreira e do lado do trabalho e da questão da subsistência, o que vos move tem de ser algo muito genuíno na vossa relação com essa arte. Cultivem essa paixão e essa autenticidade, pois elas serão o combustível para enfrentar os desafios e aproveitar as oportunidades que surgirem ao longo do caminho. Mantenham-se focados nos vossos objetivos, trabalhem arduamente para aprimorar as vossas habilidades e, acima de tudo, nunca percam de vista o amor pela música que vos trouxe até aqui.
* Joana Patacas - Assessoria de Comunicação e de Conteúdos
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