
Por Joana Patacas*, em 16 de setembro de 2024
João Soares é um pianista de renome internacional que tem encantado o mundo com o seu talento extraordinário. Descrito pelo lendário Nelson Freire que o considerou "um dos pianistas mais talentosos da nova geração brasileira”.
“É um dos pianistas mais talentosos da nova geração brasileira, que se destaca por sua sensibilidade e virtuosismo empolgante.” - Nelson Freire
João iniciou a sua jornada musical aos 11 anos e desde então acumulou uma impressionante lista de conquistas. Formou-se no Conservatório Brasileiro de Música em 2009, na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2015, e estudou em Portugal, onde obteve o grau de mestre em Performance e Ensino.
Discípulo da pianista e empresária brasileira Myrian Dauelsberg, ao longo da sua carreira, tem sido laureado em vários concursos de prestígio, como a vitória no Concurso de Piano de Munique, em 2021, que foi um ponto alto na sua carreira.
“A música é como uma religião. É algo que exige ter muita fé e ser extremamente fiel.”
Tem vindo a aperfeiçoar a sua arte através de masterclasses com professores renomados como Geir Braaten, Thomas Mastroianni, Cyprien Katsaris, Luiz Carlos de Moura Castro, Magdalena Lisak, Olga Kiun, Nikolai Lugansky e Aquiles Delle Vigne, e a sua brilhante carreira levou-o a apresentar-se nas principais salas de concerto da América do Sul, África e Europa, além de colaborações com as mais importantes orquestras brasileiras.
“Todo o trabalho que o pianista faz é para que consiga cada vez mais dominar o piano enquanto máquina. Para fazer do piano uma arte você precisa de estar completamente à vontade e com o instrumento tecnicamente bem resolvido.”
Nesta entrevista exclusiva à SMARTx, João Soares partilha detalhes sobre a sua trajetória musical, desde a descoberta da sua paixão pelo piano até aos desafios e recompensas de se tornar um artista internacional de renome. Reflete sobre a importância dos seus mentores, a disciplina necessária para dominar o instrumento e o seu compromisso em tornar a música clássica mais acessível ao público.
Como descobriu a sua paixão pela música?
Foi uma história um pouco engraçada. Quando eu era criança, minha irmã mais velha ganhou um teclado de presente de aniversário, mas não ligou muito para ele. Quem começou a brincar com o teclado fui eu. Então, foi um pouco por aí. Comecei brincando em casa e depois passei a tocar de ouvido. Quando ouvia algo que me interessava, ia para o teclado e começava a tirar a música de ouvido. Por coincidência, pouco tempo depois, criaram um projeto musical na escola onde eu estudava. Na distribuição dos instrumentos, que era uma espécie de pequena banda, eu, naturalmente, fiquei com o teclado. Foi aí que comecei a despertar a atenção das pessoas, pois eu já sabia tocar. A professora responsável por esse projeto me deu algumas aulas na época. Eu tinha até um caderninho com desafios, como tocar a escala de dó maior com as duas mãos juntas em duas oitavas, esse tipo de coisa.
Portanto, eu acho que não houve um momento específico em que descobri minha paixão. Ela já existia, já estava em mim e não foi necessária uma descoberta. Ela sempre esteve ali.
Conte-nos sobre a sua formação musical e as principais etapas da sua carreira.
Iniciei meus estudos musicais aos 11 anos em Itaperuna, minha cidade natal no interior do Rio de Janeiro. Lá, tive a oportunidade de estudar no Conservatório local, que na época tinha um convénio com o Conservatório Brasileiro de Música, situado na capital do Estado. Terminei o curso técnico em 2009 e, em seguida, me mudei para o Rio para fazer a graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Durante a faculdade, já participava de competições, conquistando alguns prémios importantes. Depois de me formar, fiquei um tempo no Rio, trabalhando, mas decidi tirar um ano sabático em Itaperuna para aprimorar minha técnica instrumental. Foi nessa época que comecei a fazer viagens para fora do país. A minha primeira experiência internacional foi em 2014, numa competição em Campillos, na Espanha. Confesso que não estava muito preparado, foi mais uma experiência de vida, para dizer "Oi, Europa! Vim te conhecer". Fiquei uns anos sem viajar e depois, em 2018, participei de outras competições internacionais, como em Espanha, Portugal e em Marrocos, onde ganhei alguns prémios. Em 2021 concluí meu Mestrado em Performance em Portugal e venci o Concurso de Piano de Munique, na Alemanha. Mais recentemente, em 2023, concluí o Mestrado em Ensino, também em Portugal.
Como é que se deu a decisão de viver em Portugal?
Em 2018, quando fui participar da competição internacional de Vigo, na Espanha, não passei na primeira prova. A minha professora no Brasil, Myrian Dauelsberg, que é um grande nome da música clássica mundial e dona da Dellarte do Brasil, que já levou e ainda leva os grandes nomes da música clássica do mundo para o Brasil com a série Dellarte Concertos Internacionais, me disse: "Você não vai ficar aí sem fazer nada. Vou te mandar 100 euros. Você entra no comboio e vai para Portugal, que você não conhece e que é aí pertinho e vai ter com o Adriano Jordão” – que é o meu padrinho musical aqui em Portugal e um grande amigo da Myrian. E assim foi. Depois, surgiu a ideia de um mestrado em performance e através da pianista e professora Luísa Tender fui estudar para Castelo Branco.
Mencionou os vários prémios que foi ganhando ao longo do seu percurso. Qual foi a importância que eles tiveram na sua carreira?
Eu acho que as competições em si são uma vitrina muito importante, independentemente do resultado final. São uma oportunidade de mostrar o seu trabalho e ser ouvido por grandes músicos que integram o júri. Muitas vezes, o que fica em primeiro lugar acaba por ter posteriormente menos oportunidades e uma carreira muito menos brilhante do que aqueles que eventualmente ganham segundos e terceiros prémios, ou até nenhum prémio. Claro que não é uma regra, mas pode acontecer e eu já vi casos assim. Além disso, os prémios também trazem estatuto e, é claro, existe o lado financeiro, que é muito bom, porque nós também temos contas para pagar. São também uma oportunidade de conhecer outros pianistas, ver um pouco como é o nível, fazer uma certa comparação, não no sentido pejorativo da palavra, mas no sentido de "deixa eu ver onde é que eu estou me metendo e o que eu posso melhorar". Por exemplo, os prémios que ganhei no concurso em Marrocos me abriram portas, porque no ano seguinte eu voltei e fiz um concerto de piano solo na Biblioteca Nacional do Reino de Marrocos, em Rabat. Foi uma porta que se abriu, foram contactos que eu fiz. No mundo artístico, sempre uma coisa vai levando a outra, é um pouco por aí. Você vai conhecendo mais pessoas e tendo mais oportunidades.
Como foi ter sido aluno de Myrian Dauelsberg?
A Myrian costumava dizer que não dava apenas aula de piano, mas também de música e de vida. Muitas vezes, a gente ia para a casa dela, dormia lá, às vezes ficava dias. Acordávamos, tomávamos café da manhã com ela e depois íamos para o piano. Ela ficava andando pela casa, prestando atenção em como a gente estava estudando.
Ela tem uma casa lindíssima em Petrópolis, que é a região serrana do Rio, como se fosse a Sintra brasileira, a Sintra Carioca. Havia três ou quatro pianos de cauda na sala. Às vezes, ela nos levava no final de semana para também ensinar o lado diplomático e político da carreira. Apresentava-nos às pessoas e éramos avaliados o tempo todo: como nos sentávamos à mesa, como falávamos com as pessoas, se éramos simpáticos ou não. Ou seja, era aula de piano e muito mais. Ela também nos colocava em cada saia justa… Dizia: "Vocês têm que tocar com febre, com dor de barriga, querendo ou não, com vontade ou sem vontade. Muitas vezes a carreira é ingrata. Você é chamado de última hora para uma substituição de um pianista que ficou doente, por exemplo, e você sai do avião diretamente para o palco. Então, ela forçava certas situações connosco, propositalmente, como se fosse quase uma daquelas fases muito difíceis de passar em videogames, e quando você passa, então sim, finalmente está apto. Ela me deu grandes lições de vida e foi uma espécie de divisor de águas na minha vida.
Quais são as suas melhores recordações dessa época?
Tendo sido aluno da Myrian, é impossível não mencionar momentos incríveis que ela nos proporcionou, nomeadamente aquele em que não somente tínhamos a oportunidade de assistir a concertos de grandes estrelas (como convidados, naturalmente), mas de desfrutar de momentos mais íntimos com grandes nomes da música. Lembro-me de uma vez que estava a chegar em sua casa para ter aulas e ouvir o piano no caminho para o seu apartamento. Era a Balada nº 4 de Chopin. Achei estranho, pois não me lembrava de ninguém da "turma" que estivesse a tocar aquilo, e imediatamente pensei que ela até poderia ter se confundido e marcado dois alunos no mesmo horário. Você não imagina a minha surpresa ao chegar em seu apartamento e descobrir que quem estava no piano era ninguém mais ninguém menos do que o grande pianista russo Nikolai Lugansky. Eu não tive aula nesse dia, não com a Myrian. A aula foi com ele. Toquei alguns prelúdios de Scriabin, bem como a Fantasia em Si Menor. Imagina a responsabilidade de tocar música russa para um pianista russo do quilate do Lugansky. Foi uma experiência. Depois disto, sentamo-nos todos à mesa para um jantar intimista. Era muito comum haver um jantar para o artista e alguns convidados depois dos concertos da Dell'Arte. E claro, os alunos da Myrian estavam sempre incluídos. Lembro-me de ter jantado também com Evgeny Kissin e András Schiff. Uma das especialidades do repertório do Schiff é certamente a música do compositor austríaco Franz Schubert. Então, neste dia, a Myrian disse para mim e para a Lígia Moreno (ex-aluna da Myrian, de outra geração): "Vocês vão para o piano e tocam a Fantasia a quatro mãos de Schubert, assim ele ouve um pouquinho quando estiver a chegar ao apartamento.” E assim fizemos. Ele chegou e lá estávamos nós no piano. Ele ficou surpreso, ouviu até ao fim e depois ainda se sentou ao piano connosco e deu várias dicas. Foi muito enriquecedor.
Conte-nos uma experiência particularmente significativa.
Eu vivi vários outros momentos muito gratificantes. Sempre que os concertos eram de música de câmara, duos neste caso, era preciso paginista. E eu era o paginista número um da Dell'Arte. A grande estrela do piano, Yuja Wang, tocou em 2018 no Rio e precisava de alguém que lhe passasse as páginas apenas para os encores. Lá fui eu, muito nervoso, sobretudo por saber que a sua apresentação anterior em São Paulo tinha sido protagonizada por alguns deslizes do paginista de lá. De fato, houve uma peça que ela tocou muito complicada de ler, redução de orquestra, cheia de cortes, de pula daqui para ali, e assim por diante. Mas no fim correu tudo perfeitamente bem. No final do concerto, quando estávamos todos juntos no camarim, o seu manager disse, a brincar: "We should take him with us". Também fui paginista para os concertos do Joshua Bell, Renne Fleming, Joyce DiDonato, Yo-Yo Ma, Itzhak Perlman, entre outros. Recordo-me especialmente do concerto da Renee Fleming. Momentos antes do concerto, estava eu no camarim de Gerald Martin Moore, pianista e vocal coach renomado mundialmente. Muito simpático, perguntou o que eu estava a estudar na altura e, em dado momento, eu cheguei a tocar um pouco para ele, ali mesmo no camarim. Pelos vistos ele deve ter gostado muito, pois desde então mantivemos o contacto e ele chegou a escrever uma carta de recomendação para mim quando eu fui aprovado para estudar no Cleveland Institute of Music. Embora não tenha ido, foi uma conquista importante, pois é certamente uma das grandes instituições musicais do mundo. Quem estudou lá foi o Daniil Trifonov, pianista russo, ganhador do 1º prémio do Concurso Tchaikovsky, uma das maiores competições musicais do mundo. Lembro-me também de uma vez que o Gerald enviou vídeos meus a uma pianista que eu admiro muito, Olga Kern, que foi 1º prémio do Concurso Van Cliburn (outra competição gigantesca).
Há pouco também mencionou o pianista Adriano Jordão. É outro dos seus mentores?
Sim, Adriano Jordão é a versão masculina e portuguesa da Myrian. Ele tem sido um anjo, sempre me ajudou muito, sempre me apoiou e continua me apoiando até hoje. A nossa relação começou justamente em 2018, quando eu saí de Vigo e vim para cá. Ele me recebeu na casa dele e me mostrou Lisboa em dois dias. Desde então, ele sempre me admirou muito também como artista. Fez e tem feito muito por mim até hoje.
Nelson Freire, um dos maiores pianistas brasileiros de todos os tempos, disse que o João era “um dos pianistas mais talentosos da nova geração brasileira, que se destacava pela sua sensibilidade e brilhante virtuosismo.” Como se sentiu ao ser elogiado desta forma?
Foi extremamente importante para mim. Infelizmente, Nelson Freire já não está entre nós, o que é muito triste, mas o elogio que ele me fez carrega uma grande responsabilidade. Ter um comentário tão positivo de alguém com seu renome é algo que levarei comigo pelo resto da vida. Esse elogio foi parte de uma proposta para uma competição em que eu participei, e precisava de uma indicação de alguém reconhecido internacionalmente. Como tivemos alguns encontros e ele já tinha me ouvido tocar várias vezes – ele e Myrian eram amicíssimos –, por isso ele realmente considerava isso. É um documento que guardarei para sempre. A responsabilidade que sinto ao carregar essas palavras aumenta com o tempo, pois conforme amadureço, minha visão das coisas muda e me torno ainda mais exigente comigo mesmo.
Há pouco disse que tinha o mestrado em ensino. Dá aulas?
Há cerca de três anos – já estou em Portugal há seis – comecei a dar aulas privadas. Já tive alunos mais velhos, adolescentes e crianças. Falando especificamente da lecionação, também já dei aulas no Conservatório Nacional e no Instituto Gregoriano.
Gosto muito de ser professor. Tive o privilégio de aprender muito com grandes mestres e adoro ter a oportunidade de passar isso para frente. Mas a burocracia que está envolvida em dar aulas em instituições, em escolas, é desanimadora. Então, eu prefiro muito mais trabalhar como pianista acompanhador, porque estou fazendo aquilo de que realmente gosto. Sobretudo, estou me mantendo em forma, porque um dos problemas de quando você só dá aulas é que você não tem tempo para praticar tanto como gostaria. Além disso, o pianista acompanhador tem mais flexibilidade, o que é muito importante para quem é artista e tem uma carreira solo também.
Os seus alunos aprendem muito consigo, mas o João também aprende muito com os seus alunos.
Sim, é uma afirmação até um pouco clichê, mas é verdade. Você acaba observando no outro um problema que você tem ou que já teve e que você consegue descobrir, corrigir ou mesmo aprimorar. Então, eu acho que é uma via de mão dupla. Em termos da minha trajetória musical, aprendo muito com meus alunos. Cada um deles traz uma perspetiva única, uma forma diferente de abordar a música e o instrumento. Ao ensinar, sou desafiado a encontrar novas maneiras de explicar conceitos, de demonstrar técnicas e de inspirar a paixão pela música. Isso também me faz refletir sobre minha própria abordagem e me incentiva a continuar explorando e crescendo como músico.
Quais têm sido os maiores desafios da sua carreira?
Eu acho que a resposta para isso não está em nenhuma situação específica. O desafio é a carreira em si, porque a maior parte das pessoas não tem noção do que é tocar piano, não tem noção de que nós somos atletas. A Myrian costumava dizer: "Você é um operário. O operário vai para a fábrica todos os dias, faça chuva, faça sol, com febre ou dor de barriga. Vocês são operários, vocês vão para o piano para trabalhar, para fazer aquilo que precisa ser feito". Ou seja, a rotina e a disciplina são como as de um atleta. Além disso, também temos de trabalhar a parte física como se fossemos atletas. Se um pianista fica um dia inteiro longe do instrumento, no outro dia ele já nota a diferença, porque o piano ou você o domina ou ele te domina, é uma coisa ou outra.
Ainda acontece ser dominado pelo piano?
Todo o trabalho que o pianista faz é para que consiga cada vez mais dominar o piano enquanto máquina. Para fazer do piano uma arte você precisa de estar completamente à vontade com o instrumento e tecnicamente bem resolvido. É necessário muito treino e disciplina. Ser dominado pelo piano ainda acontece, sim. É um processo contínuo de aprimoramento, de busca por domínio técnico e artístico. Cada vez que me sento ao piano, sei que preciso estar no meu melhor, tanto física quanto mentalmente, para poder criar a arte que desejo. É um trabalho árduo, mas também incrivelmente gratificante.
E em Portugal, encontrou desafios?
Uma coisa que para mim foi nova e que eu tive que me habituar aqui são os concertos que começam às nove e meia ou dez da noite. Eu durmo cedo e acordo cedo, então esses concertos noturnos ocorrem num horário em que eu por norma já estou pronto para ir dormir. Por isso, tenho que fazer um trabalho mental e colocar a minha mente no modo de que isso não seja um problema. Eu estou ali, estou em trabalho, tenho de tocar e tenho de dar o meu melhor. A performance tem que ser tão maravilhosa quanto possível. A Myrian dizia algo muito interessante: dar um concerto é ter inspiração com hora marcada. É uma frase que levo para a vida. “
Se o pianista pode ser comparado a um atleta de alta competição, qual é o seu “plano de treinos”? Que tipo de cuidados tem?
É uma vida bastante exigente. Por questões de postura e de saúde mental, o pianista deve ter uma atividade física. É essencial fazer alongamentos e exercícios abdominais, visto que passamos muito tempo sentados. Além disso, é crucial manter uma boa hidratação e uma alimentação equilibrada. Portanto, adoto uma abordagem holística para garantir o meu bem-estar e a qualidade da performance.
Identifica algum desafio no mercado artístico?
O mercado está extremamente saturado de pianistas que são tecnicamente perfeitos. Você tem de ter alguma coisa que toque a outra pessoa. Modéstia à parte, eu sei que tenho esse diferencial. Isto porque você pode ter 50 pianistas a tocarem no mesmo piano mas de cada vez o piano vai soar diferente. Tem a ver com o modo como você aborda o instrumento e com pormenores que fazem toda a diferença. O toque, por exemplo, é algo muito pessoal. É o que define a sonoridade que você consegue extrair do piano.
É o João que escolhe o repertório que toca ou está dependente de terceiros?
Sempre tive muita liberdade de escolher, mas quando trabalho como pianista acompanhador de uma instituição não tenho escolha. Tenho de tocar aquilo que o aluno está estudando e praticando. Isto a nível institucional.
Quando o assunto é a carreira como solista, depende muito. Às vezes recebemos convites para programas específicos e aí, muitas vezes, não há escolha. Podemos ter a sorte de ser algo de que gostamos. E se não for, fazemos na mesma, pois somos profissionais e buscaremos sempre dar o nosso melhor, mesmo que aquele repertório não nos venha com muita facilidade. Há compositores que me dão mais trabalho, como os clássicos, por exemplo.
Quando a escolha depende de si, o que escolhe tocar?
De forma geral, gosto muito do romantismo russo e romantismo tardio. Quando toco esse tipo de repertório sinto que o faço de uma maneira mais natural e fluida. Adoro Scriabin, Rachmaninoff e Tchaikovsky. Mas as minhas escolhas também têm em consideração questões de fisiologia. Por exemplo, a escrita para piano de Scriabin é muito “torta”, mas se encaixa bem na minha mão. Eu tenho uma mão grande e flexível e dedos compridos, então tenho mais facilidade para tocar uma sonata de Scriabin do que um pianista que tem uma mão mais pequena e dedos mais curtos.
Existe alguma obra ou peça que ainda o desafie?
Sim, é um pouco clichê também, porque é uma das grandes obras: o Concerto para piano n.º 3 em ré menor, Op. 30 de Rachmaninoff. Um pianista contabilizou que esse concerto, que é comporto por três andamentos e dura cerca de 40 minutos, tem mais de 30 mil notas. Eu já li o concerto durante a pandemia, ou seja, li as notas e coloquei a dedilhação, que uma coisa muito demorada e complexa de se fazer. Aproveitei esse período para estudar e houve dias em que fiquei mais de oito horas no piano. É uma obra que faz parte do auge da carreira pianística porque é grandiosa, monumental e monstruosa, mas também lindíssima. Por enquanto, tenho esse concerto dentro do baú, mas na hora certa ele vai ser reativado.
Qual considera ser o maior obstáculo da música clássica na atualidade?
Um dos problemas da música clássica é que muitas vezes é vista como algo muito aborrecido. Creio que uma das razões é a ausência de letra. Quando ouvimos um fado, por exemplo, acompanhamos também uma história, que é enriquecida pela forma como o fadista expressa tristeza e melancolia. Já na música clássica, especialmente a instrumental — excluindo canções, árias e óperas que incorporam teatro —, a história não é entregue diretamente ao ouvinte. Isso é também uma questão cultural. Além disso, há muito por trás da música no que se refere à cultura e à história. Cada obra musical tem uma história por trás e foi produzida num determinado contexto cultural e temporal, algo que o público em geral por vezes desconhece. É precisamente essa falta de conhecimento sobre as circunstâncias em que a música foi criada que pode afastar as pessoas da música clássica. Uma abordagem que explore mais completamente esse contexto poderia tornar a música clássica mais apelativa para quem não está familiarizado ou não tem o hábito de assistir a concertos. Também acredito que os artistas têm a responsabilidade de atrair e incentivar o público para que seja cada vez mais normal apreciar esse tipo de música. Algo que acho muito válido é quando, num concerto, há alguém que faz uma apresentação ao público, ou seja, conta a história que está por detrás daquela obra instrumental, para que a plateia já tenha uma nova perspetiva auditiva e sensorial. Essa contextualização pode ajudar a tornar a experiência musical mais envolvente e significativa para o público, especialmente para aqueles que possam não estar tão familiarizados com a música clássica.
Que profissão teria se não fosse pianista?
Olha, talvez antes eu não soubesse, mas hoje, refletindo sobre o que eu poderia ser, talvez fosse nutricionista. É uma área que realmente me atrai. Tenho um grande interesse em cuidar de mim mesmo, praticar atividades físicas e manter uma boa alimentação. Acredito que tudo está, de certa forma, ligado à nutrição e à saúde geral do nosso corpo. Deve haver uma preocupação especial com a saúde dos nossos músculos, tendões, ligamentos e articulações, pois são essenciais para um pianista. Isto tudo é muito importante e não deve ser, de todo, negligenciado para que seja possível estar no nosso melhor e ter uma carreira duradoura e bem-sucedida.
Que conselho gostaria que lhe tivessem dado quando estava a iniciar a sua carreira?
Recentemente, ouvi algo que me marcou bastante: nenhum talento está isento de falhas. Gostaria de ter tido essa consciência mais cedo. Houve momentos em que me senti frustrado por não conseguir realizar algo tão bem quanto esperava, ou como deveria soar, e cheguei a pensar que talvez aquilo não fosse para mim. Então, o conselho que eu valorizo é o de insistir, perseverar e entender que, mesmo possuindo um talento nato, não estamos livres de imperfeições e que é necessário trabalhar arduamente. Inclusive, lembro-me de uma ocasião em que toquei para Sérgio Monteiro, um ex-aluno mais velho da Myrian, que hoje é Chefe de Departamento de Piano na Wanda Bass School of Music nos Estados Unidos. Ele estava visitando o Brasil, e Myrian sugeriu que ele me ouvisse tocar. Lembro-me como se tivesse sido ontem. Toquei a Rapsódia Húngara nº 6 de Franz Liszt, uma obra extremamente virtuosística. Após minha apresentação, ao invés de simplesmente me elogiar, ele me aconselhou: "Estuda 20 horas por dia." Só mais tarde compreendi que esse era o maior elogio que ele poderia me ter dado, pois se eu trabalhasse arduamente conseguiria o obter o que eu quisesse da minha carreira. Ele sabia que eu tinha talento – e eu também – mas que isso só não chegava.
Quais são os seus planos para o futuro?
Quero investir na minha carreira solo. Desde que cheguei a Portugal, grande parte do meu tempo foi consumida pelos mestrados que cursei. Comecei o segundo mestrado enquanto ainda estava finalizando o primeiro, e sabemos que um mestrado previsto para dois anos raramente se completa nesse tempo. Acabou estendendo-se para dois anos e meio, com constantes ajustes de prazos com os orientadores, o que me levou a prorrogar o segundo mestrado devido à carga intensa. O último ano letivo marcou o primeiro período em que não estive envolvido em atividades académicas e neste momento estou focado em priorizar a minha carreira solo, mantendo uma atitude positiva, independentemente dos desafios.
O que é que é a música para si?
A música é como uma religião. É algo que exige ter muita fé e ser extremamente fiel. Como uma pessoa católica que segue sua doutrina com disciplina e convicção, eu também me dedico à música com a mesma seriedade e compromisso.
* Joana Patacas - Assessoria de Comunicação e de Conteúdos
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