Por Joana Patacas*, em 17 de setembro de 2024
Carla Frias é uma jovem e talentosa soprano portuguesa que tem vindo a deixar a sua marca no mundo da música clássica. Natural de Vila Nova da Barquinha, Carla descobriu desde cedo a sua paixão pelo canto, iniciando o seu percurso musical aos quatro anos com aulas de piano.
“A música faz parte de mim. É uma extensão da minha alma.”
A música fez sempre parte da sua vida. Em criança cantarolava canções tradicionais portuguesas com a sua família e aos quatro anos começou a sua formação musical. Passou pelo Conservatório de Música do Choral Phydellius, em Torres Novas, onde estudou piano e flauta transversal e começou a ter aulas de canto lírico. Prosseguindo posteriormente os seus estudos na Escola Artística de Música do Conservatório Nacional, em Lisboa, e na Escola Superior de Música de Lisboa, onde obteve a Licenciatura e Mestrado em Música – Canto Lírico.
“O que mais valorizo nesta profissão é a oportunidade de trabalhar sempre com pessoas diferentes, o que enriquece a experiência e aprofunda as ligações humanas, pois a arte e a música têm um poder incrível de nos unir.”
A soprano já conta com uma carreira notável, tendo protagonizado papéis em óperas como "Dido e Eneias" de Purcell, "Il Barbieri di Siviglia" de Rossini, "L'elisir d'amore" de Donizetti e "La voix humaine" de Poulenc. Tem sido também presença regular em concertos e oratórias, interpretando obras de Handel, Fauré, Pergolesi, Mahler, entre outros grandes compositores.
Desde 2017, faz parte do prestigiado Coro Gulbenkian, uma experiência que considera ter sido fundamental para o seu crescimento como artista. O seu talento tem sido reconhecido através de prémios como o 2º lugar no Concurso Verão Clássico de Lisboa e uma bolsa da Fundação GDA.
“Adoro a experiência de encarnar um personagem, vestir o papel e realmente mergulhar na performance operística. Viver o personagem em palco é o que verdadeiramente me fascina.”
Nesta entrevista exclusiva à SMARTx, a soprano Carla Frias partilha a sua paixão pela música e pela ópera em particular, mas também reflexões sobre a importância do autoconhecimento e da autoconfiança para uma carreira artística bem-sucedida. É um testemunho inspirador de uma artista em ascensão, determinada a deixar a sua marca no panorama musical português e além-fronteiras.
Como descobriu a sua paixão pela música?
Comecei a cantar praticamente ao mesmo tempo que comecei a falar. Sempre cantei, desde que me lembro. Apesar de não ter músicos profissionais na minha família, o meu pai, que é militar de carreira, sempre teve a música como passatempo e toca música tradicional portuguesa em romarias, festas e casamentos. Cresci a ouvi-lo cantar esse género musical. A minha avó materna também cantava e era quem me ensinava as letras das canções em português. Desde então, nunca mais deixei de cantar.
Quando é que iniciou a sua formação musical?
Comecei a estudar música muito cedo, com quatro anos – o meu instrumento era o piano. Aos nove anos, ingressei no Conservatório e Música do Choral Phydellius, em Torres Novas, onde comecei a aprender flauta transversal. Naquela época, ainda era considerada muito nova para ter aulas de técnica vocal, mas cantava no coro – aliás, durante toda a minha vida cantei sempre num coro. Comecei a ter aulas de canto mais tarde, aos 14 anos, e iniciei o meu percurso como solista, sempre mantendo a participação no coro. Mais tarde, quando entrei para o Conservatório Nacional em Lisboa, comecei a fazer mais recitais e audições, percebendo que era o caminho que queria seguir. Queria realmente ser cantora, apesar de ter custado um pouco a aceitar, pois, na verdade, eu também gostava muito de medicina e queria ser cirurgiã plástica.
Optar por uma carreira profissional na música foi uma escolha difícil?
Tive algumas dúvidas, mas os meus pais incentivaram-me e achavam que não fazia sentido eu ir para Medicina quando a música era a minha arte. A minha mãe é Designer gráfica e artista plástica, muito ligada às artes, e percebeu desde cedo que a música era o caminho que eu devia seguir. E tudo se encaminhou para aí. Ainda optei por estudar Ciências no ensino secundário, em regime supletivo, mas comecei a fazer música a tempo inteiro quando ingressei no Conservatório Nacional em Lisboa e nessa altura já tinha tomado uma decisão, pois aquilo que realmente me apaixonava e que me fazia acordar todos os dias era a música. Mais tarde, fui para a Escola Superior de Música de Lisboa e simultaneamente entrei no Coro Gulbenkian, já que tinha uma base de coro bastante boa. Estou lá desde então.
Como tem sido a experiência de fazer parte do Coro Gulbenkian?
Sinto-me muito grata por fazer parte do Coro Gulbenkian. Tem sido uma experiência incrível, pois há muita música que eu não teria a oportunidade de cantar se não estivesse no coro, especialmente aquelas grandes produções e obras orquestrais incríveis. Todos os solistas, cantores e maestros com quem trabalhamos são extraordinários, e ter a oportunidade de aprender de perto com eles é fantástico.
Porque é que mudou do piano para a flauta transversal? Ainda toca?
Foi uma decisão típica de criança. Queria experimentar outras coisas. Gostei muito de tocar flauta e ainda gosto, mas atualmente a flauta é mais uma ferramenta de estudo do que propriamente um instrumento que toco com regularidade. Por exemplo, Recentemente, durante a preparação para a ópera “La voix Humaine” (“A Voz Humana) de Francis Poulenc, a flauta foi especialmente útil. A tessitura da flauta é muito semelhante à de uma voz lírica, o que me ajudou a entender melhor os intervalos musicais, já que a flauta facilita a visualização das notas que às vezes nós cantores temos dificuldade em perceber claramente. Além disso, a técnica de produção de som na flauta é muito parecida com a técnica vocal, no que se refere ao uso do espaço na boca e à respiração. Embora na altura tenha sido uma escolha pouco pensada, acabou por ser muito útil
Quem foram os professores mais importantes durante a sua formação musical?
Todos os meus professores tiveram um papel crucial no meu desenvolvimento musical, cada um à sua maneira e no momento certo. A minha primeira professora de canto foi fundamental, pois introduziu-me ao canto lírico, abriu-me as portas para esse mundo e orientou-me de forma decisiva, apesar de termos trabalhado juntas apenas durante quatro anos. Esse tempo foi suficiente para adquirir os conhecimentos básicos que precisava naquela fase. A minha segunda professora, Filomena Amaro, já no Conservatório, foi a mais importante ao longo do meu percurso, pois foi com ela que consegui descobrir a minha identidade vocal e perceber o que eu gostava de cantar. Foi com ela que me encontrei no canto. Depois, o meu professor Luís Madureira, na Escola Superior de Música, também foi muito importante. Foi sempre muito solícito, orientando-me com grande cuidado e habilidade. Acho que todos eles foram essenciais no seu tempo, ensinando-me lições valiosas que ainda hoje aplico na minha prática musical.
E qual é a sua identidade musical?
Dentro do canto lírico, assim como na música em geral, temos várias épocas, cada uma com as suas técnicas e estilos diferentes. O que me apaixona verdadeiramente é o Bel Canto do século XIX, especialmente as obras de compositores como Bellini e Donizetti. Toda a ópera dessa época é muito querida para mim. É nesse estilo que consigo expressar-me melhor e onde consigo colocar mais de mim mesma na interpretação.
Qual foi o maior desafio que enfrentou na sua carreira artística?
Acredito que o maior desafio na minha carreira tem sido superar o medo de arriscar. Esta área é complicada e muito competitiva, estamos constantemente a competir connosco mesmos todos os dias. Além disso, há muitas pessoas talentosas a cantar bem. O desafio é não ter medo de arriscar, mesmo quando sentimos que podemos não estar tão bem preparados como gostaríamos. Esse sentimento nunca vai passar completamente, mas é importante avançar e seguir em frente. Não utilizo estratégias específicas para combatê-lo; a minha abordagem é mais intuitiva. Decido sentir o momento, confiar nas minhas escolhas e agir. É uma questão de não pensar demais e simplesmente fazer, seguir o que parece certo no momento.
O seu objetivo é trabalhar em Portugal ou gostava de ter uma carreira internacional?
Gostava muito de ter uma carreira internacional, mas ainda mais de conseguir conciliar as duas coisas, porque cá existem poucos cantores de qualidade a residir no país, já que a maior parte de nós acaba por ir para o estrangeiro devido às oportunidades que surgem. Em Portugal, há poucos locais para atuar, poucos concertos e pouco investimento na cultura, comparativamente ao que acontece lá fora. Por isso, é sempre mais fácil ir para o estrangeiro e construir a nossa vida lá. Claro que gostava de ir para fora, conhecer o mundo e cantar. Mas também quero voltar para cá e trazer um bocadinho desse conhecimento e experiências para dentro. É importante mantermo-nos cá, para conseguirmos avançar com o nosso país e investirmos mais na cultura.
Há alguma performance ou projeto de que se orgulhe?
Todas as performances que realizei foram muito especiais para mim, tanto a nível artístico como a nível pessoal. O que mais valorizo nesta profissão é a oportunidade de trabalhar sempre com pessoas diferentes, o que enriquece a experiência e aprofunda as ligações humanas, pois a arte e a música têm um poder incrível de nos unir. No entanto, se tivesse de destacar uma performance particularmente marcante, seria a minha atuação em "A Voz Humana”, uma ópera num único ato de Francis Poulenc, inspirada na peça homónima de Jean Cocteau. Foi uma experiência intensa e muito especial, não só pela responsabilidade de estar sozinha em palco, sem contracena, mas também pelo profundo trabalho de introspeção e autoconhecimento que me obrigou a fazer. Durante os três meses de preparação para a personagem, contei com a inestimável ajuda da professora Sílvia Mateus, que orientou todo o processo de construção da personagem. Juntas, debatemos intensamente o papel, o que me permitiu conhecer-me melhor e entender como reajo em diferentes situações.
Essa ópera, sendo um ato único com apenas uma pessoa em palco, não envolve contracena, o que adicionou uma camada extra de desafio e realização pessoal ao projeto. A professora Sílvia Mateus, que encenou a minha performance, a minha ópera, ajudou-me bastante com as técnicas de construção da personagem. Debatemos o assunto várias vezes e conseguimos nos conhecer melhor. Eu consegui conhecer-me melhor também e perceber como funciono em diversas situações.
Como foi a experiência de interpretar essa personagem no palco?
Exigiu uma gestão emocional intensa ao longo de 45 minutos, onde passei por diversas fases emocionais. Foi um processo bastante complicado. Na fase de construção da personagem, o trabalho envolveu definir com detalhe os sentimentos e a dinâmica emocional dela, como estar muito triste e, de repente, ter que fingir estar bem, para depois retornar à tristeza. Antes de levar a personagem ao palco, é crucial permitir-se sentir plenamente as emoções necessárias para lidar com qualquer imprevisto durante a performance. Por vezes, os imprevistos em palco exigem que saibamos gerir as nossas reações de forma eficaz. Portanto, o processo foi emocionalmente intenso; tive que mergulhar na mágoa e chorar muito sozinha, permitindo-me ser completamente levada pelas emoções, que, no fim das contas, são minhas, embora o personagem não tenha sido escrito especificamente para mim. A palavra 'encarnar' realmente encapsula essa experiência, pois é necessário infundir nossas próprias emoções no personagem.
Está a trabalhar nalgum projeto atualmente?
Sim, mas ainda não posso divulgar. Direi apenas que vai ser algo diferente. Vai ser um género de crossover, que mistura canto lírico e outros estilos, com um trio improvável.
Gosta de explorar esse lado mais imprevisível e irreverente?
Sim, mas também sou bastante purista e valorizo seguir as regras e respeitar a forma original das obras. Contudo, quando se trata de recitais ou espetáculos mais informais, acredito que faz sentido introduzir uma abordagem diferente. Essa mudança é importante principalmente porque permite uma aproximação maior com o público. Nos recitais e concertos com orquestra, geralmente existe uma grande distância entre o cantor e a audiência. Não há espaço para a interação. Noutros géneros musicais, o cantor pode interagir com o público e criar um ambiente mais descontraído, e eu gosto disso. De certa forma, quero contribuir para desfazer essa imagem de que os artistas eruditos são figuras intocáveis e muito sérias, que não podem ter contacto com o público.
O que ambiciona para a sua carreira?
Gostava de fazer mais ópera. Faço muitos concertos a solo com orquestra, e tenho tido experiências memoráveis, como um concerto muito bonito que fiz recentemente em Torres Novas, o “Cinema em Concerto”, que combinou música e cinema. Gosto muito de cantar com orquestra, em recitais e concertos de oratório, mas a minha verdadeira paixão está na ópera. Adoro a experiência de encarnar um personagem, vestir o papel e realmente mergulhar na performance operística. Viver o personagem em palco é o que verdadeiramente me fascina.
Tem algum especial cuidado com a voz?
Bebo muita água e dou uma grande importância ao sono. O descanso é fundamental para manter a voz em boas condições. Às vezes subestimamos o valor de uma boa noite de sono, especialmente quando somos mais jovens e achamos que podemos recuperar rapidamente com poucas horas de descanso. No entanto, isso não é verdade para a voz, que precisa de tempo para "acordar" e funcionar adequadamente.
Quem é a Carla quando não está a cantar? O que é que gosta de fazer nos seus tempos livres?
A música está sempre presente. Se eu não estiver a estudar o meu repertório, estou a ouvir outro estilo de música, a cantarolar. Estou sempre a ouvir música quando vou a conduzir ou quando estou em casa a cozinhar. Valorizo muito o tempo que passo em contacto com a natureza. Gosto muito de ir à praia para limpar a mente e simplesmente existir. Tentar não fazer nada é um desafio, mas é importante para desligar, embora frequentemente nos sintamos culpados por estar apenas parados. Isso é algo que muitos músicos sentem. Se passarmos três dias sem tocar, sentimos como se tudo estivesse perdido e que, ao voltar, nada funcionará como antes. Claro que isso não acontece, mas é preciso aprender a relaxar.
O que é para si a música?
Não sei responder a essa pergunta, na verdade. Porque a música faz parte de mim. É uma extensão da minha alma. Não sei explicar de outra forma.
O que é que considera ser mais importante para se ter uma carreira de sucesso?
Os dois pilares mais importantes são a autoconfiança e o autoconhecimento. Ninguém nos conhece tão bem como nós próprios e ninguém vai acreditar mais em nós do que nós próprios. Portanto, temos de acreditar muito em nós antes de qualquer pessoa nos validar de alguma forma. Não podemos estar à espera de um sim para percebermos o valor que nós temos. Porque antes desse sim vamos receber muitos nãos. E ninguém nos ensina a lidar com o não. Não é fácil lidar com o não, mas fazê-lo dá-nos muita força, e é isso que nos faz querer avançar e não desistir. Além disso, não nos devemos deixar levar por críticas negativas que não sejam construtivas.
* Joana Patacas - Assessoria de Comunicação e de Conteúdos
Fotografia de Carlas Frias da autoria de Maria João Abreu
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Poderá encontrar mais informações sobre Carla Frias em:
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