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Ana Paula Russo: canto, ensino e inspiração

Atualizado: 4 de jul.




Ana Paula Russo

Por Joana Patacas*, em 1 de julho de 2024


Ana Paula Russo é uma soprano portuguesa de excelência que dedicou a sua vida a desvendar a essência e a beleza da voz humana. Nascida em Beja, iniciou a sua formação musical no Conservatório Nacional, desenvolvendo uma técnica refinada e uma expressividade que formaram a base do seu percurso artístico.

 

Licenciada pela Escola Superior de Música de Lisboa e mestre em canto e pedagogia vocal, aprofundou os seus estudos no Mozarteum de Salzburg sob a orientação da renomada soprano Elisabeth Grümmer. Ao longo da sua carreira, destacou-se em inúmeros concertos e recitais, tanto em Portugal como no estrangeiro, marcando presença em festivais de música e eventos de renome como a Europália-91 e "Lisboa 94 — Capital da Cultura".


“A música é uma parte essencial da minha vida. Vivo da música e vivo com a música. Mesmo quando não estou a cantar, há sempre algo a cantar na minha cabeça.” Ana Paula Russo, 2024

No mundo da ópera, interpretou papéis notáveis como “Rosina” em "O Barbeiro de Sevilha, “Marie” em A Filha do Regimento, “Musetta” em La Bohème, entre outros. Teve também um papel ativo em estreias mundiais, como na ópera Os Dias Levantados de António Pinho Vargas, Corvo Branco de Philip Glass e A Rainha Louca, de Alexandre Delgado.

 

Galardoada com prémios como o 1º lugar nos concursos da Juventude Musical Portuguesa e no Concurso Olga Violante, Ana Paula Russo representou Portugal em palcos de renome mundial, como o concurso "Cardiff Singer of the World". O seu repertório diversificado inclui desde Cantigas de Natal até obras emblemáticas do repertório operático português, permitindo-lhe explorar intensamente a sua paixão pela música.


Atualmente faz recitais e participa no projeto “Entre Mulheres” com Nuno Dias, cantor lírico e guitarrista de Guitarra portuguesa de Coimbra. Também tem um duo musical ibero-americano com o guitarrista Carlos Gutkin.


“O conselho que dou aos jovens cantores é ter muita paciência e resiliência, e não se deixar abater pelas dificuldades. É um pouco como nos castings: é preciso persistir, mesmo face à rejeição e aos obstáculos.” – Ana Paula Russo, 2024

Nesta entrevista, Ana Paula Russo, que também é consultora vocal da ProART, partilha com a SMART o seu percurso, a sua paixão pela música e pela voz humana, e a importância de equilibrar o domínio técnico com a expressividade na arte do canto. Uma conversa inspiradora que nos convida a explorar o fascinante universo do canto lírico.


Como é que descobriu a sua paixão pelo canto lírico?


Essa é uma pergunta difícil de responder, porque foi tudo muito aleatório, o que me leva a pensar que o que nos está destinado acaba por acontecer, por muito que estejamos num lugar completamente diferente. Acabei por entrar no mundo da música e do canto lírico por acaso. Claro que não aconselho isso a ninguém. Pelo contrário, recomendo que sigam o percurso normal de formação, mas comigo não foi assim.

 

Então como é que a música entrou na sua vida?


A família do meu pai sempre esteve ligada à música. Nas fotografias antigas, do início do século passado, os meus familiares apareciam muitas vezes a tocar guitarra ou instrumentos de sopro. Houve sempre música na família. O meu pai era músico profissional. Cantava e tocava bateria numa banda de jazz, e, em pequena, eu ia aos concertos. Ele tinha uma voz extraordinária... Aliás, tenho um repertório de boleros, fados, canção ligeira e jazz, que imagino ter sido influenciado pelo que ele cantava. Curiosamente, em casa não era isso que eu cantava. Embora não saiba dizer porquê, imitava as cantoras de ópera, e, então, os meus pais começaram a comprar discos de música clássica. Eu fechava-me sozinha na sala e cantava, achando que ninguém estava a ouvir, mas é claro que toda a gente ouvia, porque a minha voz sempre foi muito audível e naturalmente potente, como todas as vozes da família do meu pai No entanto, nunca pensei no canto lírico como carreira.

 

E como é que começou a sua formação musical?


Foi quando eu já estava a fazer o curso de Línguas e Literaturas Modernas – variantes de inglês e alemão. Nessa altura, em 1979, a minha madrinha – que é também minha prima e 18 anos mais velha – viu que havia provas para o Coro da Gulbenkian. Ambas nascemos em Beja, mas eu vim para Lisboa quando era pequena. Ela ficou em Beja e lá não havia oportunidades para concretizar o seu sonho de ser cantora; embora fosse professora, dizia mesmo (um pouco à laia de provocação) que gostava de ter sido corista no Parque Mayer. Projetou em mim os sonhos que ela não pôde realizar e inscreveu-me para as provas. Acabei por entrar no Coro da Gulbenkian e tive a ajuda do maestro João Valeriano, que me ensinou todas as bases de Formação Musical. Recordo-o com muita saudade e gratidão. Depois disso, foi tudo muito rápido. Fui para o Conservatório Nacional e completei o Curso Superior de Canto em apenas três anos. Para mim, cantar era uma coisa muito natural. Comecei muito cedo a fazer ópera – aos 23, 24 anos. Tinha uma voz “extravagante” para o que era habitual na época, o que me permita fazer papéis que raramente outras cantoras conseguiam fazer, embora fossem talentosíssimas – agora já há muita gente a estudar de forma estruturada e que está preparada para os fazer, mas naquela altura não.

 

Que papéis eram esses?


Por exemplo, a Rainha da Noite [da ópera “A Flauta Mágica”, de Mozart, um papel conhecido por árias que exigem um alcance vocal muito amplo e notas muito altas] ou a boneca Olympia [da ópera “Os Contos de Hoffmann”, de Jacques Offenbach, que exige vocalizações peculiares para imitar a voz de uma boneca mecânica], ou seja, papéis cheios de virtuosismo e notas muito agudas. E eu atingia essas notas naturalmente – e, sinceramente, no início, sem saber muito bem como o estava a fazer.

 

Teve alguma professora que a marcou?


Devo imenso à minha professora, Joana Silva, especialmente no que toca à respiração, estruturação e consciência física. Aprendi com ela o princípio da causa e efeito: se fizermos algo de uma maneira, resultará num certo efeito; se o fizermos de forma diferente, o resultado também será diferente. No início, eu limitava-me a imitar; ouvia as gravações e as coisas saíam. Também estudei em Salzburgo e Lucerna com p Elisabeth Grümmer, uma magnífica soprano lírica alemã, que me ensinou muito. Ela dizia. “Ana, eu não sei como são essas notas que cantas lá em cima porque nunca as senti. Nunca as cantei”. Por isso, foi muito importante para mim conhecer a soprano Marimí del Pozo, da Escola Superior de Canto de Madrid, que tinha tido o meu tipo de voz. Até então, tinha tido algumas dificuldades em encontrar outras cantoras que cantassem como eu. Ficámos muito amigas e ela dizia-me que eu era a herdeira dela em Portugal, não só pela semelhança das nossas vozes, mas também porque a base do meu ensino foi muito influenciada pelo que ela me ensinou sobre a técnica espanhola antiga.

 

Fale-nos um pouco dessa técnica.


É uma técnica que está muito próxima do canto lírico tradicional, que foi sendo transmitido de geração em geração. Valoriza a excelência técnica, claro, mas também atribui grande importância à interpretação e ao uso sustentável da voz. É fundamental reconhecer que o canto tradicional não deve ser descartado; pelo contrário, deve ser integrado nas metodologias mais modernas. O canto pode ser comparável ao halterofilismo no sentido de que requer a força adequada para suportar o “peso”, ou seja, as exigências vocais, sem que o corpo “trema” sob o esforço, o que pode levar ao colapso. Da mesma forma, vozes que tentam produzir sons para além das suas capacidades naturais podem começar a 'tremer', indicando uma técnica inadequada. Vozes que podem parecer menores, mas que são bem projetadas, muitas vezes revelam-se mais eficazes e audíveis do que grandes vozes que parecem ter uma “cortina” à frente, obstruindo a sua projeção. A longo prazo, abusar da voz não é sustentável, nem para o cantor nem para a saúde vocal."

 

Acha que atualmente se dá mais importância à intensidade vocal do que à sustentabilidade vocal? 


Atualmente, há uma certa tendência para se cantar em força. Por vezes, vejo grandes vozeirões que se desgastam completamente antes do tempo, porque o corpo não consegue suportar essa intensidade. Tornou-se mais habitual os cantores optarem por usar toda a força da sua voz, talvez escolhendo uma carreira intensa de curta duração, que não dura mais do que dez anos, antes de se dedicarem a outra atividade. Outros preferem cantar com menos intensidade, mas por 20 ou 30 anos. O ideal seria que essa fosse uma decisão consciente, e não algo que acontece involuntariamente por se ter seguido por um caminho que obriga a fazer as coisas dessa forma. O problema agrava-se porque, por vezes, os cantores tentam competir com o volume produzido pelas orquestras, o que é impossível. É fundamental que se esforcem em passar por cima da orquestra, em vez de irem conta ela.

 

Porque é que acha que isso acontece?


Na minha opinião, a culpa não é só dos cantores. Os maiores responsáveis são as direções artísticas, ou melhor, a falta delas. As pessoas confundem direção artística com marketing, mas não é a mesma coisa. Atualmente, sinto que o que interessa é a figura da pessoa, o penteado, o guarda-roupa… Ah, e se além disso tiver uma boa voz, perfeito. Mas o que é que estamos a fazer? Castings para modelos ou para cantores? Por vezes, a voz ideal pode não corresponder à figura que o encenador gostaria de ter em palco. No entanto, na minha opinião, o que interessa é ter uma voz que canta o papel convenientemente. Se é muito bonita, ainda bem, mas se não é, tem de se dar prioridade à voz certa em vez de a preocupação ser se a pessoa fica bem na fotografia de uma capa de revista.

 

Ao longo da sua carreira sentiu este tipo de pressões?


Não, porque podemos sempre dizer que não nos sentimos confortáveis com esse tipo de pressão e recusar o papel. Sempre fui muito desprendida. Nunca aceitei fazer nada com que não me sentisse bem.

 

Já recusou algum papel?


Sim, já aconteceu. Uma vez, e perante uma produção um pouco desnorteada, disse: "Olhem, avisem este senhor que eu me vou embora." Mas depois vieram atrás de mim porque não tinham mais ninguém que pudesse cantar aquele papel (era uma estreia mundial). Mas não sou caprichosa.

 

Quais foram os momentos mais marcantes da sua carreira?


Todos os papéis principais, claro. Tenho sempre alguma dificuldade em eleger o mais marcante de todos, porque não tenho por hábito fazer esse tipo de retrospetivas. Estou sempre mais concentrada no que ainda tenho por fazer. Lembro-me com carinho da minha ida ao concurso BBC Cardiff Singer of the World. Não ganhei, mas foi lá que conheci o Dmitri Hvorostovsky, um dos maiores cantores que o mundo teve. No momento em que ele começou a cantar as duas primeiras frases de uma ária da ópera Don Carlos de Verdi todos nos apercebemos de que ele ia ganhar. E ganhou. Era um cantor extraordinário. Outro momento muito especial foi a interpretação do papel de “Rosina” em O Barbeiro de Sevilha, de Rossini, no Festival de Macau, em 1992. Também a estreia de “Cunegunde" na Candide de Bernstein. Interpretei dezenas de vezes a cantata Carmina Burana de Orff, até que um dia disse “chega”, porque a minha voz também se foi alterando e foi preciso saber parar. Agradeço todos os dias por ter tido tantas oportunidades, mas a voz muda à medida que envelhecemos. A última ópera que cantei foi o Gianni Schicchi de Pucinni, no Centro Cultural de Belém, em 2018.

  

E qual foi o seu maior desafio?


A ópera mais difícil que alguma vez cantei, a vários níveis, foi The English Cat, do compositor Hans Werner Henze. Interpretei o papel da gata "Minette". Musicalmente foi extremamente desafiante devido à sua escrita contemporânea. Vocalmente, também foi incrivelmente difícil. É uma ópera muito complicada de interpretar. Além disso, a minha personagem estava sempre em palco. Só havia uma cena em que eu não cantava. Só uma! Foi extenuante. Naquela altura, a encenação foi feita pelo Luís Miguel Sintra, o meu querido Luís Miguel. Éramos só cantores portugueses. Um elenco fantástico, tão bom como qualquer elenco a nível internacional. Nessa única cena em que eu não cantava, saía, sentava-me, bebia água e cinco minutos depois voltava a entrar. A história é sobre uma gata da nobreza inadaptada à sua aristocracia. Acaba por ser atirada ao rio e morre. Mas não é que mesmo assim a gata ainda aparece em palco em forma de fantasma? Sim, mesmo depois de morta, a gata continua a cantar! Foi uma das experiências mais desgastantes que tive, tanto mental como fisicamente. Talvez as pessoas não se apercebessem disso porque a técnica existe para fazer parecer natural algo que não é nada fácil de fazer.

 

Como é que geriu a sua carreira?


Antigamente, não tínhamos agentes. Embora atualmente já existam algumas agências e agentes, a figura do agente de cantores, aquele que compreende o repertório e sabe o que é mais adequado para os seus artistas, ainda não é comum. Era sempre eu que negociava os meus papéis e geria a minha carreira. Hoje em dia, essa ainda é a realidade para muitos cantores. Contudo, no passado, parece-me que tínhamos mais apoio por parte dos diretores artísticos, que conheciam profundamente as vozes que tinham à sua disposição e sabiam exatamente os papéis que cada um podia desempenhar. Por exemplo, o doutor Serra Formigal, fundador da Companhia Portuguesa de Ópera do Teatro da Trindade e administrador do São Carlos, bem como o doutor João Freitas Brancos, diretor artístico também do São Carlos, nunca nos convidariam para papéis que não fossem adequados.

 

Comparativamente, quais são os principais desafios que os cantores de ópera enfrentam hoje em dia?


Como disse há pouco, atualmente, enfrentamos um grande problema: as escolhas muitas vezes são baseadas mais na imagem que se quer projetar do que na adequação vocal. Frequentemente, os artistas são pressionados a assumir papéis que não são apropriados para a sua voz. Não existe uma triagem eficaz, nenhum filtro que previna que as pessoas acabem em situações difíceis. Se um artista recusar um papel, do outro lado pode surgir um estigma: "Oferecemos-lhe um papel e ele recusou." Isso revela uma falta de compreensão de que nem todos os sopranos podem interpretar todos os papéis de soprano, assim como nem todos os tenores podem interpretar todos os papéis de tenor. A comparação com instrumentos musicais como o violino ou o piano é ilustrativa. Um estudante de violino segue o mesmo currículo que os outros estudantes de violino. O mesmo acontece com o piano; todos seguem um programa estabelecido e, tecnicamente, todos devem alcançar um determinado nível de habilidade. No entanto, no canto, a situação é diferente. Não posso simplesmente atribuir uma ária de mezzo-soprano a um soprano lírico, e vice-versa. Não existe uma abordagem uniforme para todos. Assim, aqueles que disponibilizam o repertório e selecionam os artistas precisam ter um conhecimento profundo nessa área para fazer a escolha acertada. É crucial entender as subtilezas vocais e as capacidades específicas de cada cantor.

 

Então, considera que as prioridades estão trocadas?


Muito, sim. E chego a pensar que o forçar das vozes também vem daí. E bastante. Não é que as pessoas sejam insensatas. Mas, quando se trata de um jovem cantor ou cantora que está a começar, ao dizer logo "desculpe, mas isso não é para mim", pode parecer arrogante. E quem está do outro lado pode pensar: "Quem é que ele pensa que é? Nós a darmos esta oportunidade, e não aceita? " Isso também limita o desenvolvimento dos próprios cantores. Porque, quando uma pessoa se presta a cantar algo que não é ideal para a sua voz e que a esforça demasiado, não está a cuidar do seu instrumento. E o cantor tem de ter essa consciência. Quando somos jovens, a nossa capacidade de regeneração muscular é muito superior ao que será mais tarde. Fazer aventuras dessas, com 20 e poucos anos ou 30, ainda pode resultar. Mas essas aventuras podem ser calamitosas.

 

Fale-nos da experiência de estrear papéis e colaborar diretamente com compositores, como aconteceu várias vezes na sua carreira.


Fiz várias estreias, entre as quais "Dias Levantados" do António Pinto Vargas, o "Corvo Branco" do Philip Glass e "A Rainha Louca" do Alexandre Delgado. É difícil porque não temos referências. É tudo novo e por isso dá muito trabalho. Mas é um privilégio trabalhar diretamente com os compositores e, de certa forma, fazer parte da criação, porque durante os ensaios cada um vai dando o seu contributo.

 

Tem algum ritual antes de subir ao palco?


Não, nessas coisas sou muito prática. Quando cantava papéis muito agudos, antes de entrar em cena, pressionava os dedos na face na zona dos malares até doer imenso. Ainda hoje faço isso aos meus alunos para que eles se lembrem de que é nesta zona que temos que projetar o som. Depois, desde que o meu pai morreu, cada vez que canto penso: "Paizinho ajuda-me porque que és tu que vais cantar por mim." Convenci-me de que não era eu, mas sim o meu pai a cantar através de mim, e que essa é uma das razões porque mantenho a minha voz, para que ele possa cantar. Quando as pessoas me cumprimentam e dão os parabéns, penso sempre que deviam dar os parabéns ao meu pai, não a mim. Agora, se não o conseguisse visualizar, ficava preocupada. Mas nunca aconteceu e antes de entrar no palco vejo-o sempre a sorrir. Veja bem… A última coisa que o meu pai fez, já muito senil e acamado, foi cantar comigo. Deitava-me ao lado dele e começava a cantar uma canção. Fingia que me esquecia da letra e ele completava. Mesmo já não reconhecendo ninguém, estávamos sempre ligados através do canto. Acho que nunca contei isto a ninguém…

 

Já atuou em inúmeros palcos internacionais. Existem muitas diferenças entre os ambientes operáticos de outros países e Portugal?


Em termos de qualidade, não noto muita diferença. No entanto, acho que em Portugal ainda estamos um pouco atrás no que se refere à produção e projeção da ópera. Faz-se muita coisa de excelência – veja, por exemplo, a ópera “Felizmente, Há Luar!”, do Alexandre Delgado –, mas só temos um teatro de ópera, o São Carlos. Basta ir aqui ao lado, a Espanha, para vermos que qualquer comunidade tem um teatro e uma escola superior. Estamos a falar da Comunidade Valenciana, da Comunidade de Madrid, da Andaluzia, da Catalunha, do País Basco. Todos eles têm estruturas para receber espetáculos de ópera. Em Portugal, infelizmente, ainda não temos essa realidade. Apesar da qualidade dos nossos artistas ser comparável à de outros países, a falta de infraestruturas e investimento na ópera acaba por limitar o desenvolvimento e a projeção desta arte no nosso país.

 

Já tem uma longa carreira como professora de canto. Que conselhos dá aos seus alunos, especialmente aqueles que querem uma carreira no canto lírico?


Para já, existe sempre aquela dúvida: será que estamos a formar mais músicos do que conseguimos dar resposta? Ou seja, é muito importante lembrar que nem toda a gente que se forma em canto tem que ser necessariamente cantor lírico. Há várias opções de carreira. Podem ser coralistas, pertencer a grupos de câmara ou até mesmo seguir uma carreira focada em segundos papéis. Afinal, as óperas não se fazem só de papéis principais. O conselho que dou aos jovens cantores é ter muita paciência e resiliência, e não se deixar abater pelas dificuldades. É um pouco como nos castings: é preciso persistir, mesmo face à rejeição e aos obstáculos. É importante continuar a trabalhar para aprimorar a técnica e a expressividade. Com dedicação e perseverança, as oportunidades acabam por surgir, seja no mundo da ópera ou noutros campos da música.

 

Que impacto tiveram os prémios na sua carreira?


Os prémios raramente impulsionam as carreiras. Servem para ganhar algum dinheiro, para dar visibilidade. Na verdade, por vezes, é o acaso que impulsiona as carreiras. Por exemplo, de repente adoece alguém e tem-se uma oportunidade para fazer esse papel numa substituição. 

 

Atualmente, é jurada em concursos de canto. Quais são os seus critérios para avaliar os participantes?


Valorizo a coerência e a inteligência na escolha do repertório. É fundamental que o cantor selecione peças adequadas à sua voz e que não tente cantar repertório desadequado. Além disso, dou muita importância à estabilidade ao longo de todas as provas. A performance deve ser limpa do princípio ao fim, sem grandes falhas ou inconsistências. É importante lembrar que não são necessárias apenas grandes vozes para ter sucesso. Há papéis específicos para sopranos ligeiros, por exemplo, que são vozes mais pequenas, leves e agudas. Se apenas valorizássemos vozes pesadas, esses papéis e os cantores que os interpretam não teriam espaço no mundo da ópera, o que seria uma grande perda. O importante é que cada cantor explore ao máximo o seu potencial e se destaque dentro das características únicas da sua voz.

 

Tem uma parte importante da sua carreira dedicada à gravação de repertório de compositores como João Domingos Bomtempo e Artur Santos, entre outros. Fale-nos desta ligação à música portuguesa.


Uma parte muito importante da minha carreira é dedicada à música portuguesa, sobretudo àquela que estava esquecida. Foi por mero acaso que isso aconteceu. O Maestro e musicólogo Jorge Matta começou a investigar repertório de obras portuguesas do século XVIII e convidou-me, juntamente com outros colegas, para dar voz e corpo àqueles papéis. Então, comecei a fazer estreias modernas de muitas dessas obras, a convite de pessoas que sabiam do meu gosto por este tipo de repertório. Aliás, quando fiz a licenciatura, o meu trabalho de dissertação foi sobre a música portuguesa do tempo do rei D. João V, ou seja, a primeira metade do século XVIII. Anos mais tarde, no mestrado, completei o estudo, abordando a música portuguesa do fim do reinado de Dom João V até Dom João VI, portanto, a segunda metade do século XVIII e início do século XIX. Além do trabalho escrito, fiz também um recital onde cantei as obras que estudei. Tenho feito muitos recitais com música de compositores portugueses como José Vianna da Motta, Jorge Croner de Vasconcelos, Artur Santos e Eurico Carrapatoso, meu amigo e professor de composição no Conservatório, entre outros.

 

Sente que tem a missão de divulgar a música portuguesa?


Sim. Por exemplo, há pouco tempo convidaram-me para cantar em Espanha e fiz questão de levar música portuguesa, porque acho que é mesmo uma missão. A nossa música é de excelência. Temos coisas tão ou mais belas e de tanta ou mais qualidade quanto outros compositores de nível internacional. Faço isso por gosto e por achar que é um dever nosso divulgar o que é nosso.

 

O projeto «Entre Mulheres», com Nuno Dias, também surge dentro desse espírito de propagação da música portuguesa?


Para mim, foi um privilégio o Nuno ter-me escolhido para esta parceria. Somos amigos e é um projeto lindíssimo, com um trabalho magnífico não só de interpretação, como também de transcrição e harmonização. No início deste ano, fomos cantar a Goa, a convite da Fundação Oriente, e estamos agora a tentar candidatar-nos a apoios para internacionalizar o projeto. É mais uma iniciativa que tem como objetivo divulgar e valorizar a música portuguesa, desta vez focada no discurso feminino da Guitarra de Coimbra e a voz (feminina).

 

Tem outros projetos?


Faço muitos recitais. Também tenho um projeto de guitarra em duo desde 1996 com Carlos Gutkin, mas de guitarra clássica. Em 2005, gravámos o álbum “Melodia Sentimental”, que é o nome de uma peça de Villa-Lobos, com um repertório de compositores ibero-americanos, e temos outros dois programas: o “Recital de Natal”, com canções populares de diversos países; e o “Pecadilhos Humanos e Redenção Final”.

  

Uma última questão: que é a música para si?


A música é uma parte essencial da minha vida. Eu vivo da música e vivo com a música. Mesmo quando não estou a cantar, há sempre algo a cantar na minha cabeça. Um colega do júri comentou outro dia: "Tu já reparaste que estás sempre a cantar?" E é verdade, eu estou sempre a cantar, mesmo quando vou na rua.

No entanto, há uma coisa de que eu gosto ainda mais do que da música: a História. Sempre foi a minha grande fixação, mais ainda do que a música. As pessoas ficam muito chocadas quando digo que, neste momento, o que mais gosto na música é o silêncio. Mas o silêncio faz parte da música, e as pessoas esquecem que essa parte é importantíssima. Isto não quer dizer que eu não adore a música, cantar e ensinar canto. Mas há mais coisas para além disso. A história é mais do que um passatempo, é o meu objeto de estudo. Quando fiz as teses sobre a música portuguesa, encarei essa parte como uma forma de história da música. Tudo tem a sua história, seja pintura, arquitetura ou qualquer outra coisa, e eu estou sempre a ver tudo em função da história. Mesmo a música, tem de ser sempre contextualizada na sua época. Por isso, fico frustrada quando os meus alunos aparecem a cantar coisas sem terem pesquisado de onde vêm, de quem são, de que estilo são, e quando e em que contexto foram produzidas. A música é uma parte fundamental da minha vida, mas a história é o que realmente me fascina e me move.


Joana Patacas - Assessoria de Comunicação e de Conteúdos


Quer saber mais? Veja e ouça abaixo uma das suas belas apresentações:




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